quarta-feira, 13 de outubro de 2021

CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Quando a vi...

(Herbert Haeckel)


Confesso-vos, meus caríssimos leitores, dividir-me entre o que disseram Emanoel Viana Teles e Antônio Carlos Gomes Fontenelle Fernandes. Na poética visão, tudo e nada podem ser, mesmo, lindos e maravilhosos... Depende de onde se olha, para onde se olha e como se olha.

Mas, algo realmente me aconteceu, assim como com Teles, não somente ao cruzar a Ipiranga e a Avenida São João, ao chegar por aqui. Além da dura poesia concreta de suas esquinas haver-me impactado, principalmente, sensibilizaram-me as gentes que não conseguiram acompanhar o tempo e as ilusões do amoedado ouro, e que se perderam, e que ficaram para trás, embaralhadas em seus sonhos de uma noite quase sem fim.

A noite fria, assim como a Fernandes, ensinou-me a amar mais o meu dia, e, na mesma intensidade, fez-me amá-la também. E cada dia presente é um dia tão importante quanto aquele que está por vir, quanto aquele que é transato. Por isso, aproveitai-o!

Vi-a, pela primeira vez, sentada, solitária, a uma mesa do Sujinho, da lusitana filantropia, que salvou muita gente que quase nada possuía.

Visitaria, naquela noite, um amigo que morava no Trussardi, na Avenida São João, esquina com a Praça Júlio Mesquita, mas, antes, teria de comer algo, e o dinheiro era bastante somente para uma refeição lá, no Sujinho, em que todos eram igualmente acolhidos, onde não havia fronteiras, nem no infinito, onde, democraticamente, desvalidos, jornalistas, artistas, estudantes, intelectuais, putas, médicos, políticos ocupavam suas poucas mesas e deliciavam-se intensa e prazerosamente com o sabor da acolhedora comida como se fosse de mãe.

Da Consolação, seguiria, a pé, num trajeto que passaria pelo Cemitério da Consolação, pela Igreja de Nossa Senhora da Consolação, já na Praça Roosevelt, quando pegaria a Ipiranga, a vencer, em seguida, a Praça da República, e, na esquina do edifício Independência, das animadas mesas do Brahma, alcançaria a São João, ainda abalada pelo fogo e fumaça do prédio da Pirani, entre a Pedro Américo e a Aurora, passado pouco mais de um mês, daquele 24 de fevereiro, de uma quinta-feira de fortes ventos, em que a tragédia só não foi maior porque a ajuda veio do céu...

Detive-me naquele instante naquela belíssima imagem, quando a vi, e não me contive. Não me pude conter, é bem verdade. Fui em sua direção. Pedi-lhe licença e, antes mesmo do seu consentimento, sentei-me, apressadamente, apresentando-me a ela.

Seus olhos contristados faziam-na parecer-me, apesar disso, muito mais bonita e cativante. Os cabelos nigérrimos, realçados pela floritura branca, como diadema, escorriam, leve e naturalmente, pelo ombro, a remeter-me à deífica figura olimpiana. Os lábios de intenso rubro eram o osculatório que a boca sequiosa desejavelmente procura.

Perguntou-me sobre coisas que não soube eu responder naquela hora, como, por exemplo, se eu era alvenel ou se conhecia algum, e que só tiveram sentido para mim algum tempo depois.

Ofereci-lhe compartilhar a minha quase opípara refeição, sob o olhar pasmado do garçom, que parecia nada entender. Mas, ela recusou, a dizer-me que há muito não sentia fome...

As horas prestas, agradabilíssimas, passaram como num átimo, a ponto de deslembrar-me de meu compromisso com o amigo Nestor – mas, ele haveria de aceitar as minhas escusas!

Chegado o momento de despedir-nos, ofereci-me para acompanhá-la a casa. Recusou, inicialmente, ao que supus tentar parecer-lhe uma gentileza (com segundas intenções, hei de assumir esta minha declaração confessória!), a dizer-me ser desnecessário o esforço, sobremaneira pelo adiantar das horas, já na iminência de iniciar-se um novo dia. Todavia, com a minha insistência, limitou-se a dizer-me:

-Tu é quem sabes! Depois, não vás dizer que não avisei...

O olhar de perplexidade do casal ao lado adiu-me uma certa difidência, que me não fez desistir, entretanto, do meu desiderato.

Pusemo-nos a caminhar em direção à Praça Roosevelt. Passos lentos, como a quererem perpetuar o momento, e as mãos, não sei se adrede ou acidentalmente, que se tocavam, como se arquitetassem o inevitável, ao meu sentir, entrelace...

O ar blandífluo da noite soprava-nos a face e entregava-nos dulcíssimo aroma de flores.

Caminhei ainda alguns passos quando notei que ela parara logo atrás. Volvi-me.

- Aqui está de bom tamanho. Se quiseres, vemo-nos outra vez – disse-me ela.

Acenou-me, a despedir-se, e, fantasticamente, traspassou o muro do Consolação.

Consegui, enfim, após alguns dias, localizar sua campa, que necessitava de um conserto, para que o ataúde não mais ficasse exposto.

Talvez, para mim, não haveria importância alguma a pedra fraturada no requietório. Mas, havemos de pôr-nos no lugar do outro, mesmo em certas circunstâncias que não se nos parece habitual. Contratei um alvenel, que bom serviço prestou.

Linda Inês, então, sorriu-me, pela primeira e última vez. Nunca mais a vi.

E alguma coisa aconteceu em meu coração depois que eu cruzei a Ipiranga e a Avenida São João... E as noites? Ah, eu as amo, como amo os meus dias!

 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

 CRÔNICAS - Herbert Haeckel

No bico do urubu

(Herbert Haeckel)


Em verdade, em verdade, eu vos digo: uma mentira contada mil vezes, ao contrário do que andam a dizer por aí, não se transforma em verdade (uma mentira será sempre uma mentira), ela apenas pode adquirir o contorno da naturalidade. Tudo o que é natural é, de certa forma, aceitável, ou passa a ser aceitável, a depender de inúmeras circunstâncias.

Estava eu cá a pensar nas repercussões desta pandemia, em que se multiplicam como ratos os negacionistas, e lembrei-me de Atanasz Ingazeiro, o pastor, cuja mãe o dera à luz no prostíbulo de Jurema Sapiranga, conhecidíssima marafona de Pau de Angico, no terceiro quartel do século XX - a alcunha remetia à blefarite ciliar que a fez perder as celhas -, e que abriu seu próprio negócio, graças aos favores prestados a um ex-deputado udenista, já falecido, que, como bom burguês que era, de dia, defendia a família tradicional baiana, e, à noite, gastava seus dinheiros a explorar as putas da Ladeira da Montanha - segundo contam alguns, esse ex-deputado udenista emprenhou mais de vinte meretrizes. Na numerosa prole da putada, o pastor Atanasz.

Não muito apegado aos estudos, Atanasz conheceu a reprovação escolar logo cedo. Passava pelo menos dois anos, quando não, três, em cada série. Foi quando o ex-deputado udenista, pouco antes de morrer de doença adquirida nas noites perdidas nas esbórnias no putal, procurado por Tiana Ingazeiro, conseguiu, como retribuição a antigo obséquio, uma matrícula no Nossa Senhora de Lourdes, no bairro de Nazaré. Assim, Atanasz pôde, enfim, concluir os estudos do primeiro grau, sem necessitar, entretanto, frequentar a sala de aula, é bem verdade...

Começa de trabalhar na carniceria do Mercado Vásquez, onde conheceu Ivana Pompeu, que morava na Rua da Poeira e sonhava com a casa grande com empregados bastantes.

Para atender aos gostos da moçoila, Atanasz subtraía mercadorias, para assim vendê-las e apurar dinheiro quase suficiente para as exigências de Ivana. Foi descoberta a ladroíce e Atanasz perdeu o emprego. Não ficou preso, porquanto as peças do inquérito sumiram - há quem diga ter visto as mãos de Jurema Sapiranga, que muito acalantou o delegado Antunes Pena, nos tempos em que foi casado com a recatada Nancy, filha de proeminente político da região cacaueira, no sumiço dos tais papéis.

Ivana, muito mais sagaz, convenceu Atanasz a iniciar uma nova empresa. Fê-lo frequentar uma igreja, onde começou a especializar-se em explorar a fé alheia. Fez também Atanasz um curso por correspondência com o pastor Romildo, o capixaba, experto na arte de ludibriar incautos, que lhe acresceu a experiência de que necessitava para ganhar dinheiro à custa da ingenuidade dos que procuravam lenir seus sofrimentos, ou, como soía acontecer, à custa do enfermiço medo de arder nas labaredas do inferno por causa do amontoado de pecados - e é incrível como pessoas assim, multiplicados os bordéis disfarçados de igrejas neopentecostais, reúnem-se aos milhares e passam a adotar um padrão de comportamento: com uma bíblia debaixo do braço e a vestir uma roupa desprimorosa, esperam que todos acreditemos na remissão de seus pecados! Vede, por exemplo, Rasdna Al-Amari, que depois de enfeitar com um par de espalhafatosas guampas a fronte do fardado marido, com o contributo do cunhado, João Francês, hoje vive a segurar uma bíblia, a tentar fazer crer na sua regeneração, enquanto torce para que o marido morra e deixe para ela uma pensão.

Os reiterados saques na tesouraria do templo administrado por Atanasz fizeram com que Romildo, o capixaba, rompesse com o fino ladrão - neste meio, a concorrência é vista com maus olhos...

Com a fama de larápio adquirida, as portas das igrejas todas fecharam-se para Atanasz, que não teve outra opção senão, a imitar Silvano de Fafião, criar a sua própria igreja... É bem mais fácil do que podeis imaginar, nobilíssimos leitores! Basta um pouco de tolos e outro tanto de picaretas que fingem arrependimento e a igreja terá o seu rebanho de ovelhas... Tosquiá-las frequentemente é o imperativo para saciar o apetite pecuniário do pastor...

Passados alguns anos, desde os primevos tempos de farisaísmo, fui procurado por Atanasz, que desejava divorciar-se de Ivana, após ter ciência da tentativa infrutífera de envenená-lo. No curso do longevo processo de divórcio, já prestes a aniversariar pela oitava vez, Atanasz enviuvou.

Nossos contatos foram escasseando, até que desisti, por fim, de cobrar os devidos honorários.

Todavia, não deixei de, uma vez e outra, vê-lo na tevê durante as madrugadas, a aplicar o golpe do milagre em falsos doentes, em falsos viciados, e a dizer que a cura dependia, sempre, do quanto se tem de fé. Aí, portanto, o cerne da questão: ao afirmar que a cura dependia da fé, Atanasz, malandramente, afastava de si, com naturalidade, a responsabilidade pelo insucesso da terapêutica supostamente aplicada. Há, frequentemente, quem creia nestas farsas... E, de tanto repeti-las, tornam-se naturais.

Com a pandemia, apesar da insistência dos pastores e bispos em continuar com os cultos, para que não cessasse a ladroagem, sucumbiram ao vírus letal muitos daqueles que se diziam protegidos...

O charlatanismo de Atanasz, o pastor, com seus falsos milagres, de Romildo, o capixaba, com sua falsa água consagrada, e de tantos outros, foi escancarado, e ficou mais do que provado que igreja nada cura.

Antes de finalizar esta crônica, soube que Atanasz está, como se diz por aí, no bico do urubu: agoniza, sem esperança alguma de convalescer, num leito de cuidados intensivos...

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Quando Caroá sumiu do mapa

(Herbert Haeckel)

 

Há gentes que não escrupulizam em ter a solércia como meio de ganhar a vida. Não é novidade. Mas, nos dias de hoje, o que outrora era quase exceção passou a ser absoluta regra.

Conheci a aldrabona e biliosa Robizônia Jacuacanga por intermédio do agora desafeto Benevides Capitolino, numa visita a Caroá, distante de Salvador quase 500 quilômetros, quando ainda mantinham um concubinato, regido muito mais pelas desavenças do que pelo respeito e carinho, necessários a qualquer relação.

De contributo para o fim do consórcio, há, sem dúvida alguma, a mão obnóxia do massagista Policarpo Jacuacanga, filho de Robizônia, que de santo somente possuía o nome, incansável em escoucear Benevides... Somente quando Policarpo foi laborar como massagista do time de cestobol de Caroá, em nome do amor que nutria desmesurada e secretamente pelo basquetebolista Genebaldo Lapa, é que deixou em paz Benevides... Todavia, já não havia mais tempo para que Robizônia e Benevides se concertassem.

Robizônia, que curou a espertina somente depois de subtrair as mesas e cadeiras, à socapa, enquanto todos dormiam, da escola pública em que trabalhava, conseguiu, enfim, montar a sua escola própria. Batizou-a, em homenagem ao filho madraço, “Educandário São Policarpo”.

De início, além da própria Robizônia, foi professorar a sua filha, Ordélia, de incurável fealdade hereditária, e que, ademais de extremamente fedegosa, por conta da imensa carda que lhe dava falsamente um aspeto trigueiro, era conhecida pela oneomania: não podia entrar num mercado, pois queria levar tudo!

Paulatinamente, veio a crescer a escola, que chegou a contar com um quadro considerável de professores, que viviam, quase todos, esfaimados pela ausência do obrigatório estipêndio, mas sob a promessa de que tudo seria resolvido.

Com a mudança do alcaide, à época, novos ares foram respirados. O remoto vezo de desviar o que era público voltou a ser uma toada. Pagas algumas dívidas, feitas outras tantas foram. Mas, o fato é que a escola cresceu mais ainda nos quatro anos durante os quais a situação política foi favorável a Robizônia.

Vieram novas eleições, mas o candidato, que daria continuidade à comilagem de Robizônia, não foi eleito, obrigando-a a um jejum prolongado na ladroíce. Como era de esperar-se, a escola empequeneceu.

Mais um pleito se aproxima e novamente crescem os olhos de Robizônia sobre a fazenda municipal de Caroá. Pretende eleger o abigeatário Lupércio Pequeno, que acumulou cabedal à custa de terceiros, para prefeito.

A culinarista cubana Serena Hernández, ainda dedicada aos quefazeres na casa de Robizônia, confidenciou-me - quando me pediu para ensinar-lhe o preparo de uma iguaria portuguesa, da fronteiriça Monção do vinho verde da Alvarinho, às margens do Minho, feita de cordeiro assado com arroz no alguidar em forno de lenha, de nome “Foda à Monção” – que a quadrilha já se alvorota em lotear a prefeitura...

Como a preludiar o desastre que se debuxa, olhei agora e já não vejo mais no mapa da Bahia Caroá!





sábado, 15 de agosto de 2020

 CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Ainda bem que não existem milagres

 (Herbert Haeckel)


Se há ou não milagres, posso afirmar-vos, meus caros leitores, que não existem como vós pensais. Explico-vos: os “milagres” – assim chamados todos os fenômenos que escapam da explicação científica – existem, mas não são milagres, na acepção de algo sobrenatural. Necessitam, para acontecerem, apenas do concurso do pensamento, a que chamais, consciente ou inconscientemente, de fé. Todavia, não vim hoje até vós para oferecer-vos um tratado, nem mesmo um compêndio, sobre a naturalidade dos fenômenos. Pelo menos, não hoje.

Enquanto isso, continuai a crer no que pensais ser milagre. Far-vos-á bem!

Conversava sobre amenidades com Celina Ribeirão, enquanto sorvíamos uma chávena de infusão de alecrim, quando bateram à porta descomedidamente. Após o susto pelo inesperado, Celina, olvidando-se que estava somente trajada com uma quase transparente camisola, foi ver quem a chamava. Perguntavam por mim. Era o protistologista Onofre Laranjeira. Pediu-me um instante em particular comigo.

Após a rapidíssima palestra, pedi escusas à amiga Ribeirão, e saí correndo em direção à casa de Padre Eugênio. Vi-o ainda a dar o último suspiro. Diante da situação em que se encontrava o corpo do sacerdote, instei pela presença do delegado Fagundes, ainda que pairasse sobre o ar a possibilidade de uma terrível dor de cabeça até explicar o que uma faca minha estava a fazer cravada no peito do Padre Eugênio.

Meu álibi: Celina Ribeirão. Presto, fiz-lhe um bilhete, cuja resposta não tardou também a chegar, com poucas palavras, mas que me pesaram toneladas: “Só não podem saber que horas tu chegaste cá. Meu marido, se souber, mata-te!”...

Pensei o que poderia ser pior: ser acusado de homicídio, e permanecer vivo, ou de adultério, e ser morto...

Este é um daqueles momentos ímpares... É quando o mais fervoroso crente se iguala ao mais cético ateu: nestas horas, em que se está entre a cruz e a espada, e que tudo parece irremediavelmente perdido, todos se lembram que existe Deus!

Ah, meus amigos! Antes que continuemos com a narrativa, devo esclarecer-vos que nada tive com Celina. Nunca encostei um milímetro sequer de qualquer dedo meu naquela pele macia e cheirosa, que cobre como um véu aveludado aquele corpo escultural... Tampouco toquei com meus lábios aqueloutros lábios carnudos e rubros, qual uma pitanga, dos quais exala dulcíssimo e inebriante mel ... Nem em sonhos! Celina é uma dileta amiga, que, ao meu sentir, cometeu um grande erro ao casar-se com o pedrista Nabuco Ribeirão tão-somente para lenir o sofrimento causado por um antigo amor não correspondido. Não, não sei de quem se trata, conquanto Celina sempre dissesse, a sorrir enigmaticamente, que quem mais o conhece sou eu...

Ante à impossibilidade de usar meu legítimo álibi, para a proteção de tão estimada amiga, socorri-me ao meu repertório de preces. Por muito pouco, quase me catolicizei ao clamar por tudo quanto era santo!

Constatado o óbito pelo esculápio Miguel Coriolano, o instrumento fatífero foi retirado do peito inerte de Padre Eugênio, revelando a lâmina carnífice que continha as iniciais N.R.

Mesmo eu a saber que não cometera qualquer delito, precipitadamente, pus-me mentalmente genuflexo aos desígnios do imponderável. A emoção incontida embota a razão, como já vos disse alhures...

Se eu fosse um incauto que acreditasse no supranaturalismo, se eu não tivesse esse devotamento que tenho à ciência, certamente diria ter-se operado um verdadeiro milagre!

Mas, milagres, como vós imaginais, não existem... Ainda bem!



segunda-feira, 13 de julho de 2020


Literatura de Cordel - Herbert Haeckel

O Brasil da Pandemia
(Herbert Haeckel)

Nestes tempos, ficar em casa manda-se...
Obedece quem tem muito juízo!
Quem não tem logo mostra estranho viso:
Leviano, egoísta... O mal desvenda-se,
Faz-se forte, presente, e o bem debanda-se!
E o pascácio, que não é raro, crê
No que diz o outro lorpa na tevê:
“Gripezinha”, “e daí?”, “não sou coveiro!”...
Assinala o boçal e palpiteiro,
Insciente que não sabe o abecê!

Não bastasse o palerma do Planalto,
Que prescreve, sem ser mesmo esculápio,
Só a ouvir seu guru com horoscópio,
Cloroquina (a causar-me sobressalto!),
Há quem siga o bandalho de cargo alto...
Sem ter sarna a tomar ivermectina,
Pensa ter já cursado medicina,
E receita também para os amigos
E parentes, a ocultas de testigos,
Uma, duas, três doses, na surdina.

“Engenheiro civil! - cidadão não”...
Cuidadoso, o pacato vigilante
Viu crescer a protérvia achincalhante...
No Brasil fascistoide, sem razão,
Tem bocó a dizer velho refrão!
“Você sabe com quem está falando?”
Diz o parvo, de vezo deplorando,
Quando quer parecer o que não é:
Acredita ser nobre o pangaré,
E amiúde o patego vai zurrando!

Multiplicam-se as gentes apoucadas -
São sequazes do biltre capitão;
Todos eles confiam na ilusão
Que o Jair tem diploma de "doutor"
E receita um remédio salvador!
Se faltar água tônica no gim,
Esta culpa, pois, é do frenesim
Da moçoila estultíssima que ensina
Como ter facilmente a cloroquina –
Mas só serve p’ra quem come capim!

Foi provado que igreja nada cura,
Que pastor quer mais é juntar milhão!
Valdemiro, o do golpe do feijão,
Causa inveja a satã na sinecura:
Sem milagre algum, cobra alta fatura!
Edir, Silas, Romildo, todos querem
O dinheiro dos tolos que encontrarem...
Pandemia eles chamam de histeria,
A mirar na primaz tesouraria,
E os fiéis os seus dízimos pagarem!

Se quereis achar pouco, tomai, pois,
Esta nova: também há o patrão,
Que, com roupa de santo, mui ladrão,
Faz acordo ardiloso, pr’a depois
Pagar p’ra quatro o quanto era p’ra dois!
Franconilo, Marcondes, Jessé, Sandro
(Desconheço quem seja o mais malandro!)...
Dai-me agora um motivo para crer
Que há patrão bom – vou logo vos dizer:
Nem nas fábulas (crede-me!) de Fedro!

Também Carlos, o alcaide, capitula...
Compromisso nenhum tem com a vida:
Com a pena, com seu traço homicida,
Pressionado, o decreto reformula!
E o sabujo regente, que bajula
O lojista e o gerente insaciável,
Tem na mão, como chaga não tratável,
A tristeza de quem chora o finado,
Que o inimigo, invisível e malvado,
Arrastou para a cova indesejável!

segunda-feira, 27 de abril de 2020


CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Há gostos para tudo
(Herbert Haeckel)

Eis, aqui, a minha confissão: não me surpreendo mais com as pessoas, mesmo quando praticam o que eu poderia classificar como insólito, ou impossível. A criatividade humana é algo impressionante. Destrói muros do aceitável, do ponderável.
Frutuoso Amuzembele saiu de Angola porque se opunha a Agostinho Neto. Também Jonas Savimbi não o aturava.
Aportou clandestinamente em terras ianques, e só não foi expulso de lá porque fugiu a tempo.
Chegou à Bahia em 1979, quando o debuxo da redemocratização no Brasil recebia seus primeiros traços. Na mala, uma calça de algodão, duas camisas, muitas cascas de pau-de-cabinda e uma lata com um punhado da terra vermelha do Cazenga, para lembrar-se da congolesa Jamila. Ah! Jamila...
Conseguiu um muquifo, ao cair nas graças da puta Analdina, na Maciel de Cima, próximo ao casarão onde morou José Sotero Maciel de Sá Barreto. Comida e cama de graça. Analdina até mudou de profissão em nome do amor a Frutuoso, e foi vender quitutes na rua do Tira Chapéu, quase a chegar na Casa dos Sete Candeeiros.
Todavia, não demorou muito para Frutuoso cuspir no prato em que comeu... Cuspiu na cama também.
Conheceu a desafinada e desenxabida cantora Eva e com ela se amancebou, para ir morar em sua casa na Fazenda Garcia.
Sem profissão, Frutuoso começa de vender folhas, raízes e cascas de árvores. Uma pequena barraca no Largo Dois de Julho, pouco a pouco, foi-lhe rendendo alguns dinheiros, a ponto de poder livrar-se da voz irritante da dissonante Eva.
Deu, enfim, este passo, e, novamente inupto, mudou-se para a Carlos Gomes.
Eva arremessou-se do Elevador Lacerda, depois de um grotesco espetáculo vespertino ao tentar cantar, embriagada, “My Funny Valentine”. Na conta de Frutuoso, dois suicídios... Analdina, anos antes, parou embaixo de um caminhão na Ladeira da Praça. Seu corpo destroçado, enquanto não chegava o rabecão do Nina Rodrigues, ficou a impedir a saída de uma viatura do Corpo de Bombeiros.
A freguesia aumentava. As empregadas domésticas das Mercês e circunvizinhança cuidavam para espalhar os atributos viris de Frutuoso, denominado por elas de “Angolano”.
Tornara-se habitual, após a propaganda boca a boca, a frequência de damas, que se faziam de honestas aos olhos da sociedade, na barraca de Frutuoso, o que o compeliu a abrir uma ervanaria na rua Ruy Barbosa, que não durou por muito tempo. O comércio de folhas foi substituído por outra atividade, muito mais prazerosa e rentável: Frutuoso passou a atender consultas divinatórias.
À porta de seu consultório, uma placa feita de madeira, escrito com letras brancas “Pai Angolano”. Ao adentrar, uma saleta com um banco de Kombi a servir de sofá para as consulentes, duas prateleiras ainda com o que restara de algumas ervas e cascas de árvores e uma secretária de sucupira. Depois da porta pintada com tinta a óleo verde, outra sala, na qual Frutuoso realizava as sessões de adivinhação, com uma mesa coberta por uma toalha branca, em que repousava uma peneira de palha, rodeada de colares de contas, com dezesseis búzios, um pedaço de morim branco, uma vela que ficava acesa somente durante as consultas e uma terrina de porcelana, comprada num antiquário próximo ao Sebo Brandão, onde eram depositadas notas graúdas de cruzeiros. Atrás da cadeira em que se sentava Frutuoso, uma outra porta, com uma cortina de miçangas coloridas, que dava para um pequeno quarto, com uma cama e uma bacia de ágata no chão, para a consulente banhar o órgão copulador, depois de experimentar os efeitos do pau-de-cabinda em Frutuoso.
A fama de Frutuoso já ia longe. Os comentários nas festas vesperais de todos os domingos do Clube Cruz Vermelha, que nenhuma relação tinha com a instituição humanitária, chegavam como notícia redentora para muitas patroas do Canela, Corredor da Vitória e Graça.
Berengária Almeirão tomou conhecimento do Pai Angolano por meio da manicura Jandira Paixão. Ao chegar em casa, teve a confirmação, pela criada Valdivina, dos predicados de Frutuoso.
Sem detença, cuidou Berengária de vestir sua melhor calcinha, despediu-se do depauperado marido que, como todo o castigo para corno é pouco, ainda se recuperava da fratura do tarso, e foi-se consultar com o Pai Angolano.
Passava um pouco das três horas da tarde, quando Berengária chegou ao consultório de Frutuoso, digo, Pai Angolano. Foi logo a dizer que não cria em superstições, em bruxarias e coisas afins, e que sua vinda tinha um único desiderato: mitigar a merencória solidão com o falo rijo de Pai Angolano.
Frutuoso tinha seus segredos. Antes de começar a consulta, sorvia meia chávena do chá de pau-de-cabinda, que lhe garantia a tão comentada e festejada virilidade.
A ver que Berengária estava mesmo decidida a pular a etapa divinatória, não restou a Frutuoso outra opção senão aumentar a dose do chá, para que houvesse, conforme imaginou, um resultado mais rápido. Em vez de meia xícara, tomou três. Mas, como se diz cá e acolá, de remédio para veneno o que muda é a dosagem!
Já por cima de Berengária, Frutuoso começa de sentir uma dor no peito e um queimor a subir para a cabeça. Não deu outra...
Após o grito, os dentes cerrados, e Frutuoso desaba por sobre Berengária, que ainda gemia de intenso prazer.
Infarto agudo do miocárdio.
Dois dias depois, já a exalar a fedorentina peculiar, foi feito o levantamento cadavérico, quando deram pela falta de uma parte do corpo de Frutuoso.
E foi inumado assim, a faltar um pedaço.
Há alguns meses, em visita à Gisela Almeirão, notei, sobre um balcão, um estojo de muiracatiara adornado com gemas de jaspe vermelho, com uma plaqueta com a inscrição “Pai Angolano”.
O taxidermista Apolinário Lisboa, que procurei dias depois, contou-me sobre a inusitada peça, trabalhada há mais de trinta anos, e como ela ficou após o castão de prata a adorná-la.
Conhecido isto, não me canso de dizer que para todas as coisas há gostos!





quarta-feira, 8 de abril de 2020


CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Dar de Beber ao Susto
(Herbert Haeckel)

Já dizia a Mariquinhas que dar de beber à dor é o melhor...
Consegui, finalmente, uma entrevista com Eugênia de Castro. Um contato efêmero, por sua idade avançada - não sei ao certo quantos natais possuía nas contas, porque a sua vaidade não lhe permitia revelar-me tão bem guardado segredo... Mas, nos meus cálculos, mais de nove décadas haveriam de ter passado, desde o dia em que lhe deram à luz...
À entrada, um vestíbulo mal iluminado, com algumas poucas, porém bem cuidadas, plantas e o cheiro do chá a convidar-me para entrar, aguardava-me Vicente, também alfacinha como Eugênia, e que com ela veio de navio das boas terras de além-mar.
Na sala de estar, uma janela descortinava a rua calma, a apresentar-me mais proximamente as flores roxas da quaresmeira no apogeu de março, e a deixar adentrar o sublime canto entrecortado de agudos e graves de um sanhaçu-cinzento. Ao fundo, um balcão de madeira escura, e, sobre ele, uma licoreira bico de jaca, presumivelmente de cristal, ao lado de um galo de faiança portuguesa, cuja cauda fora parcialmente quebrada.
Na parede, descascada ao rés do chão decerto pela umidade, uma fotopintura de Eugênia moça, de bordas desgastadas pelo tempo... Quiçá estivesse ali para denunciar sua verdadeira idade...
À direita, um canapé de jacarandá no estilo neorrococó, com uma pequena almofada em cada uma das extremidades, repousado sobre um tapete com toda a certeza de Arraiolos.
De um dos cômodos da casa, vinha o som, quase inaudível, de um fado. Pensei, num primeiro momento, equivocadamente, tratar-se da inolvidável cantante lusíada Amália Rodrigues. Mas, não reconheci a canção, o que me levou a descartar a possibilidade de ser realmente a Rainha do Fado. Era outra Rebordão, a prima Fábia, que, desde aquele instante, imensamente me encantou.
Enfim, pude conhecer Eugênia. Sentamo-nos. Foi-nos servida uma infusão de casca de limão, numa chávena de porcelana de cores garridas.
Fiz a comprovação de que Eugênia possuía mesmo uma memória invejável. Não fora nada parcimonioso o retratista Álvaro Braga quando dela falou...
A palestra com Eugênia tinha uma razão. Soube, por intermédio do faiscador Hermínio Oliveira, que ela conhecera de perto um graduado oficial do exército brasileiro, que participou ativamente da repressão durante a ditadura militar. Daí, meu interesse, no afã de conhecer mais da história, além do que a minha prática, em defesa de anistiados políticos, restritamente me permitia conhecer.
É nas conversas de alcova, quando os obséquios carnais inspiram as mais inimagináveis inconfidências, que podemos realmente conhecer os meandros da personalidade humana.
Reputava, sinceramente, Osvaldino Santa-Fé por um homem acerbo, de uma supina rudez, sempre mal-humorado e a pregar coices em cima de todos. Uma verdadeira cavalgadura com certidão de batismo!
Por fim, já bem adiantada a hora, falei a Eugênia sobre o machão Osvaldino Santa-Fé e dos seus modos incivis, quando fui interrompido açodadamente:
- Osvaldino? Osvaldino Santa-Fé? Uma rapariga! Uma afoita e esfaimada mocinha! Uma meretriz de quinta categoria! Pedia-me emprestado um penhoar de renda e o vestia por sobre umas calcinhas esgarçadas que as guardava no quartel e as trazia sempre consigo e se deitava com o ativo Vicente, sob ameaças de mandá-lo prender e torturá-lo até a morte por subversão! Derretia-se por um priapo! Nunca vi igual! Inverti as tabuinhas da gelosia, só para espreitar o safadismo daquele pervertido paneleiro!
Espaventado com a revelação, lembrei-me da Mariquinhas... Não somente dar de beber à dor é o melhor! Ao susto, também valem umas ginjinhas!



sexta-feira, 3 de abril de 2020


CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Nos Braços do Capeta
(Herbert Haeckel)

Paulo, o que era Saulo, já dizia, em carta de aconselhamento aos coríntios, que aquele que planta e aquele que rega têm uma só intenção, e a recompensa para cada um será proporcional ao seu próprio trabalho.
Não se imaginava Silvano de Fafião capaz de trabalhar. Quiçá porque cultuasse, com extremado esmero, o vezo de mandriar.
Antes mesmo de narrar-vos estes fatos, confesso-vos fui levado a propender para o aceitamento de que a ocasião faz, sim, o ladrão. E faz a vítima também.
Pouco antes de Dom Celso José Pinto da Silva tornar-se bispo da diocese de Vitória da Conquista, Silvano de Fafião teve um pensamento... Diz ele, para quem sempre destinou sua burla, uma revelação.
Contava com pouco mais de vinte e três anos, quando ainda perambulava pelas ruas, a aplicar arrioscas nos pacóvios, a fim de que pudesse conseguir algo para comer e, para justificar a astenia carnal, pagar pelos serviços oferecidos na Vila Mimosa. Nunca teve pendor para os lavores, como já vos disse alhures.
Iniciava-se a semana e Silvano, com o numerário arrecadado em suas trapaças, acabara de almoçar uma deleitante costela bovina no Escondidinho. Pegou a rua do Carmo até a Sete de Setembro. Na Ramalho Ortigão, foi em direção ao Largo São Francisco de Paula. A missa já estava em seu terço final. Foi a primeira vez que entrou numa igreja por sua vontade própria. Escolheu não crer em nada que não fosse ouro e cobre.
A beleza arquitetônica da Igreja da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, mais pela sua suntuosidade, encantou-o. Foi aí que decidiu fundar uma igreja sua.
Fez, para tanto, um curso de iniciação bíblica, malgrado suas crenças não avançassem além da veneração aos quinto e sétimo pecados capitais segundo Tomás de Aquino.
Seguindo a lição do astuto Romildo, o capixaba, que já amealhara considerável riqueza, Silvano, finalmente, abriu sua igreja.
Em frente ao espelho, ensaiava repetidamente, com esgares elaborados, até cansar-se, os sermões que no púlpito proferiria. Precisava parecer convincente. Conseguiu parecer.
Passaram-se os anos e com eles a remota necessidade de pequenos golpes esvaiu-se. Com o padrão de vida modificado, Silvano já possuía casa e veículo próprios, além de outros bens materiais, semelhantemente aos que lhe precederam no farisaísmo. O estelionato religioso era a principal atividade do seu promissor negócio.
Casou-se também e teve filhos, três, se me não engano, obrigando-o, mais ainda, a especializar-se na mercancia. Com isso, a imitar Oral Roberts e sua doutrina da semente, assim como o fraudador Jim Bakker, Silvano ingressa no televangelismo, passando a apresentar um programa hebdomadário. Um profícuo negócio!
Há uns três anos, o inconfidente fígaro Timóteo Simão, em um animado colóquio com o manicuro Justo Perneta, o escrivão Praxedes Faino e o barqueiro Mário Colombiano, nas bodas da rameira Jojô Carabina com o esculápio Lauro Macazzola - insciente da aquisição de consorte com oculto vício, sem direito à redibição - revelou que Silvano, malgrado vivesse a dizer que homossexual era criação de satanás, mantinha um ardente caso de amor com o travesti Morgana Cudelume, nascido Argemiro Negrão, de quem Silvano, a cotio, extorquia vultosa soma advinda do proxenetismo, além de deliciar-se nos prazeres da carne - assim, a confirmar o que disse Timóteo, narrou-me Sebastiana Macajuba, que também estava nos festejos conubiais, prestimosa auxiliar de enfermagem que aplicava a penicilina redentora nas luéticas da casa de Morgana, e que por muitas vezes tratou Silvano em suas recorrentes gonorreias.
Os dízimos já se lhe não saciavam o sobejo apetite por dinheiro. Invitou Silvano, então, os fiéis, aqueles que não possuíam a casa própria, e que eram muitos, ao que chamou de “desafio da semente”, a constituir os gérmens do maior desejo de nove entre dez brasileiros... Arrecadou muito, o bastante para passar a ter uma aeronave naquele aeródromo de Jacarepaguá. Por outro lado, como sempre, ninguém saiu do primeiro tijolo...
Recentemente, nestes tempos de compulsório isolamento social, vi Silvano de Fafião num programa de tevê, pedindo a seus fiéis que frequentassem as igrejas e que trabalhassem, pois sem trabalho, não há renda. Se não há renda, não há dízimo...
Neste momento, lamentei profundamente não existir o inferno. Se houvesse, gostaria remuito de ir para lá, somente para ter o prazer de ver Silvano de Fafião nos braços do capeta!





sexta-feira, 27 de março de 2020


CRÔNICAS - Herbert Haeckel

O Bom Patrão
(Herbert Haeckel)

Amiúde, as pessoas têm desconectado suas práticas de seus discursos. A hipocrisia balançou o berço da humanidade... Hoje, ainda embala o sono de muita gente!
Roselino Xisto abriu seu próprio negócio. Sentia que corria em suas veias o empreendedorismo, desde tenra idade, quando ainda sujava os fundilhos ao postergar a saída do excremento sólido, somente para manter-se na brincadeira por mais um tempo com os outros meninos. Rendeu-lhe isto, a propósito, um apelido que fazia referência a... Deixemos isso de lado!
Uma pequena representação de uma famosa marca de artigos de couro foi seu primeiro negócio, inaugurada na esquina da Rua do Asilo com a Hugo do Tílburi, no centro de Nova Rainha.
A lojinha era uma empresa familiar. Contou, para isso, com a ajuda de Samir Gamaleão, seu filho, tão hipócrita quanto o pai, que fora à Bahia aprender Matemática – é o que ele, Samir, diz, conquanto, aqui e acolá, pede ajuda para somar dois e dois – e voltou com o tal diploma em uma das mãos, com a cabeça vazia e a outra mão à frente. Lá fora, não lhe deram emprego. Há ainda pessoas com higidez mental neste mundo...
A empresa começa de prosperar. Com oito empregados já, Roselino abriu outra loja ao lado da primeira, porque não queria que seus olhos se distanciassem dos negócios... Aprendeu estas coisas com o velho Calixto Xisto, que ordenou usassem as madeiras de sua cama para a confecção do caixão quando passasse desta para melhor. Um avaro incorrigível que fez escola. Seu corpo macilento foi para a necrópole num saco de linha, seguido por dois cachorros esfaimados que farejaram aquela carcaça imprestável. As madeiras foram vendidas por Roselino, que apurou alguns cruzeiros e os usou para dar de entrada nas alianças que ofertou a Aurismália, com quem contraiu núpcias meses depois, muito mais de olho no vultoso dote.
Roselino Xisto acumulou cabedal. Se lhe aumentava um centavo no patrimônio, mais cúpido se tornava. Como não podia tirar de sua clientela, tirava de seus empregados, pagando-lhes bem menos do que deveria pagar. Ainda assim, jactanciava-se, sempre que possível, de ser um “bom patrão”, porque, segundo ele, pagava os estipêndios aos seus subordinados, e para seduzi-los, organizava, uma e outra vez, um convescote com os empregados e seus familiares. Tudo por conta dos bônus recebidos da fábrica que representava e que não poderiam ser vendidos...
Devotado na canguara de Sinhô Salustiano - que ciência bem guardava na moagem da cana e no fabrico da cristalina bebida – Roselino, nas vésperas das feiras, costumava estar com seus confrades, quando, após embriagar-se, repetia vitupérios a Isabel, a dita Redentora, por ter abolido a escravidão.
Cidade suja, onde proliferavam ratos aos milhares, Nova Rainha experimentou os horrores da peste bubônica.
Estávamos reunidos na casa de Veridiana Parahyba, com quem Roselino mantinha secreto romance, para os festejos do santo padroeiro. Enquanto sorvia um licor num cálice arroxeado de um conjunto comprado na feira de Santana do Igapó, Roselino apalpava subtilmente, quase ocultamente, o peito de Veridiana e discursava sobre a moral e os bons costumes e de como estavam escassos naqueles dias. Neste instante, chega a notícia de que Belarmindo Capistrano sucumbira à doença do pulmão. Seguiram-no rumo ao cemitério Ordélio Madureira, Tertuliano Cacimba, Onofre Gonzaga e tantos outros... Pânico instalado.
Por ordem do alcaide, ninguém nas ruas!
Todavia, Roselino, que nutria doentio amor ao cobre, não admitia ver suas lojinhas fechadas por causa da peste bubônica.
Com febre – não decorrente da peste, mas por ver seu negócio parado – Roselino chamou seus empregados e abriu o seu comércio, rebelde à ordem dada pelo prefeito. Nada vendeu, porque não havia quem comprasse. Mesmo assim, as lojinhas não fecharam as portas.
As pessoas não chegavam para comprar. Somente chegavam as notícias de que um e outro teriam partido para o outro mundo.
Dias depois, talvez dez, não me recordo, Roselino Xisto, que dormira, tão-somente para não ficar distante de sua riqueza, várias vezes no depósito da lojinha, junto aos ratos, fez seus sucessores.
Na sua lápida, colocada anos depois de seu passamento, está escrito “O Bom Patrão”.
Disso, eu não tenho dúvida: patrão bom é somente aquele que está sob sete palmos de terra!





segunda-feira, 9 de março de 2020


CRÔNICAS - Herbert Haeckel

Eu sou você!
(Herbert Haeckel)

Dejair de Maria do Faro casou-se pela quarta vez. Um desafio, quiçá...
Arrisco-me a dizer que não teve muita sorte nas uniões anteriores - há quem diga que as guampas extravagantes que floresceram em sua fronte não foram, sozinhas, suficientes para pôr um termo nas relações: necessitou Dejair, em cada um dos casamentos, da ordem judicial para afastar-se do lar. Medida protetiva.
Dejair afirmava e afirma até hoje ser a favor da família tradicional. A socos e a pontapés, é bem verdade, defendia a sua família tradicional...
Mas, com Chanelle, certamente seria diferente. Conheceu-a na periferia da Capital. Ela prestava serviços. Bonita - posso, sim, dizer que era bonita - e bem mais jovem que Dejair, solícita, dadivosa... Conversava gesticulando Chanelle. Mãos hábeis, muito hábeis. Mãos de veludo! - disse-me, por telefone, o inconfidente Zenóbio Timbira, suspiroso de saudade, depois que rompeu a amizade de vinte anos com o terapeuta Oscar Barros, que ainda não apareceu nesta história...
Dejair passava maior parte do tempo fora de casa. Chanelle passa maior parte do tempo dentro de casa.
Dejair virou pastor. Menos tempo para dedicar-se à consorte fogosa, digo, jeitosa. Quando em casa, gastava seu tempo nas redes sociais, a atacar os que se colocavam contra o seu jeito de pregar na igreja. Um vício.
Já há muito o quinhentista Luiz de Camões falou que “o amor é fogo que arde sem se ver”... Nada mais preciso!
Chanelle queimava em labaredas da paixão indócil. Mas, seu descompassado coração, em plena festa, como uma bateria de escola-de-samba, já não batia sob a regência, sob a pequeníssima batuta de Dejair...
Dejair de nada desconfiava, embora um ou outro mui amigo cuidava para acender a desconfiança do marido distraído - muito mais para ver o circo incendiar-se e, quem sabe, provar um pouco da cobiçada bainha ataviada de macia pelúcia. Todavia, Dejair não era muito inteligente - não, amigos leitores, não serei acrimoniosamente sincero, não desta vez, ao ponto de afirmar categoricamente que Dejair era um completo asno! Desculpai-me pela falta de sinceridade... Neste delicado momento, sinto-me obrigado a vestir a capa da hipocrisia, tão em moda nos atuais dias! Respeitemos a pessoa do pastor Dejair!
A maledicência macróbia! Eva, se houvesse existido, teria sido a primeira sua vítima!
Onde estávamos mesmo? Ah, sim! O pastor Dejair! Ainda sofrente com a apunhalada pelas costas - há quem diga que foi facada pela frente! - agora, prestes a provar, novamente, do gosto amaríssimo da infidelidade... Que infelicidade!
Bramia, espumante, como um animal ferocíssimo, no púlpito da igreja, em que se mais falava de satanás que de qualquer outro.
Ao fim do culto, muito mais cedo que o normal, Dejair liga para sua casa.
- Alô! do outro lado, atendeu uma voz masculina. Silêncio sepulcral.
- Quem está falando aí? perguntou o surpreso e desconfiado Dejair. Mais um interlúdio de austero silêncio...
- Ora, ora! Eu sou você! respondeu-lhe a voz masculina. 
Dejair permaneceu calado por uns instantes, estupefato, desorientado, até, por fim, cair na realidade nua e crua...
- Ah, bom! Que susto a gente deu na gente! Pensei até que fosse o Oscar! Chame nossa esposa aí!



domingo, 8 de março de 2020

Pequeníssima Reflexão sobre o 8 de Março
(Herbert Haeckel)


Nove entre dez pessoas no Mundo carregam consigo o preconceito de gênero, segundo estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), divulgado há menos de uma semana. Esse preconceito inclui, principalmente, a falsa concepção de que a mulher seria inferior ao homem, e que por isso não mereceria o mesmo tratamento que se dá aos homens, que não deveria ocupar os mesmos espaços que o homem ocupa, que deveria exercer uma função secundária na sociedade... 
Em 2019, foram assassinadas no Brasil 1.314 mulheres. As motivações foram várias, mas, um atributo é comum a todos esses assassinatos: o preconceito de gênero, que insiste em colocar a mulher num plano inferior. 
Há uma equivocada e nefasta concepção de que a mulher é objeto de dominação. Ela, sobremaneira ao relacionar-se com alguém, passa a ser vista como a propriedade daquele com quem se relaciona, que a priva, em todos os sentidos, de viver a sua própria vida. Há milhares de maridos, companheiros, namorados, pais, irmãos, tios, colegas etc. que se veem numa fictícia superioridade e que se acham capazes de decidir o destino de uma mulher. 
Não é fácil ser mulher, principalmente numa sociedade baseada no patriarcalismo e no machismo. 
Não é fácil ser mulher numa sociedade em que se pratica, muita vez com disfarces, o preconceito de gênero. 
Não é fácil ser mulher numa sociedade em que há misoginia. 
Não é fácil ser mulher numa sociedade em que há a hipocrisia de homenageá-la num único dia do ano e desprestigiá-la nos demais dias do ano, colocando-a num plano de inferioridade, humilhando-a, violentando-a, torturando-a, assediando-a, matando-a...
Não há mais espaço para estes tipos de comportamento. Afinal, estamos a ingressar na terceira década do terceiro milênio...
Dia 8 de Março, hoje para mim, é dia de reflexão, é dia de silenciar-me para permitir-me ouvir o grito ensurdecedor de quem é vilipendiada, é torturada, é assediada, é espancada, é violentada, é assassinada em todos os dias do ano; é dia de calar a minha voz para que se façam ouvir as vozes de quem a sociedade cruelmente, desumanamente amordaçou. 
E que nos outros dias do ano eu possa ouvir e fazer reverberar as vozes de quem não curvou a cerviz e levantou-se contra a masculinidade doentia, tóxica. 
Laíses, Amélias, Anas, Marias, Patrícias, Brunas, Emílias, Marisas, Micheles, Ideais, Olímpias, Sônias, Jumárias, Adrianas, Cristinas, Elzas, Elizas, Elzanes, Hirleides, Lívias, Luzinetes, Lucianas, Iracys, Marinas, Naiaras, Sandras, Renatas, Lúcias, Tânias, Neides, Antônias, Márcias, Alessandras, Noelys, Iracemas, Luízas, Helenas, Jaquelines, Magdas, Janeides, Joanas, Virgínias, Dandaras, Josefinas, Nísias, Anitas, Emmelines, Berthas, Jerônymas, Pagus, Olgas, Sophias, Simones, Shirleys, Leilas, Lauras, Roses, Auroras, Suelys, Alceris, Marilenas, Iaras, Dinalvas, Catarinas, NildasZuzus, Dilmas, Vanessas, Manuelas, Fernandas, Natálias, Janaínas, Romildas, Jusselias, Alices, Carolinas, Célias, Marianas, Milenas, Marielles, este não é o vosso único dia! 


sexta-feira, 6 de março de 2020

Antropologia do apocalipse
(Herbert Haeckel)


Novos e mais sombrios tempos!
Ampliaram-se os conceitos... O de cultura, por exemplo...
Pode-se afirmar, hoje, que cultura é assim: o sujeito inicia o dia comendo feijoada, dobradinha, mocotó, farofa, rabada, buchada de bode, sarapatel, barreado, cuscuz com sardinha e ovo cozido, pastel-de-feira, caldo de cana, açaí, mais ovo cozido, repolho, batata-doce, feijão tropeiro, baião-de-dois... Joga por cima litros de caipirinha e de batida de maracujá, acompanhadas daquela cervejinha. Dá uns passos de catira, sacoleja a carcaça num fandango caiçara, come mais uns quitutes, batatinha em conserva, salada de cebola, pão de queijo, croquete de salsicha, mais ovo cozido. Larga a mão com força no pandeiro e dá aquela sambada de mestre-sala, com rodopio de porta-bandeira, joga uns passos de capoeira e vai do maracatu ao frevo, sem perder o tom. Come mais uma dúzia de ovos cozidos, salada de batata e maionese, bebe cajuína, chimarrão, tarubá e guariba... Empina pipa e papagaio, antes do culto ou da missa das dez, vai ao desafio repentista só para dizer palavrão, mais ovo cozido e cervejinha, tiquira, aluá, com bolo de puba na quermesse, arroz doce, mugunzá e cachaça de jambu. No final, com o bucho em verdadeiro motim, revoltado, indignado, vai espirrar e solta aquele peido azedo, sulfurado, que afugenta até palhaço de circo e que acaba com o forró, mesmo jogando talco no salão. Cultura é isso, cultura é assim...

Pensamentos...



«Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração.» (Kant)

«Assim como se diz que a hipocrisia é o maior elogio da virtude, a arte de mentir é o mais forte reconhecimento da força da verdade.» (William Hazlitt)

«Conhecer a verdade não é o mesmo que amá-la e amar a verdade não equivale a deleitar-se com ela.» (Confúcio)

«A água corre tranqüila quando o rio é fundo.» (William Shakespeare)

«O repouso é bom, mas o tédio é irmão do repouso.» (Voltaire)

«Você será avarento se conviver com homens mesquinhos e avarentos. Será vaidoso se conviver com homens arrogantes. Jamais se livrará da crueldade se compartilhar sua casa com um torturador. Alimentará sua luxúria confraternizando-se com os adúlteros. Se quer livrar-se de seus vícios, mantenha-se afastado do exemplo dos viciados.» (Sêneca)

«É extremamente fácil enganar a si mesmo, pois o homem geralmente acredita no que deseja» (Demóstenes)

«Precisamos parecer um pouco com os outros para compreender os outros, mas precisamos ser um pouco diferentes para amá-los.» (Paul Géraldy)

«O que sabemos é uma gota e o que ignoramos é um oceano.» (Isaac Newton)

«Na atual sociedade, em que os valores estão invertidos, o dinheiro é capaz de comprar tudo, inclusive a verdade, a amizade e o amor. Mas, findo o dinheiro, esgotam-se, também, e ao mesmo tempo, as verdades, as amizades e os amores por ele comprados.» (Herbert Haeckel)

Curiosidades

Calcula-se que há 100 milhões de insetos para cada ser humano.

A maior borboleta do mundo é a Queen Alexandra Birdwing, encontrada numa pequena área da floresta tropical no norte da Papua Nova Guiné. A fêmea, que é maior que o macho, pode chegar a 31 cm de envergadura e ter massa de até 12kg. Está ameaçada de extinção, em razão da destruição de seu habitat natural.

O órgão sexual da aranha macha está localizado no final de uma de suas patas.

As abelhas possuem cinco olhos; três pequenos no topo da cabeça e os dois maiores na frente.

Alguns insetos conseguem viver até um ano sem a cabeça.

Uma barata pode viver até 6 dias sem a cabeça; acaba morrendo de fome, porque não tem como se alimentar.

As formigas comunicam-se por meio do olfato.

Mosquitos são atraídos duas vezes mais pela cor azul do que por qualquer outra cor.

O inseto com o maior cérebro em relação ao tamanho do corpo é a formiga.

Os mosquitos fêmeos chupam o sangue, porque necessitam das proteínas para desenvolver os ovos que carregam.

Uma asa de mosquito move-se mil vezes a cada segundo.

As moscas domésticas vivem apenas 2 semanas.

Os mosquitos causaram mais mortes do que todas as guerras juntas.

A luz dos vaga-lumes é produzida pela oxidação de uma substância química chamada luciferina na presença de uma enzima chamada luciferase, de ATP (fonte de energia) e de magnésio. A cor e o ritmo da luz variam de acordo com a espécie. O animal pode controlar a produção, a duração e a intermitência (quantas vezes acende e apaga) da luz. A luminescência é um aviso aos inimigos para que se afastem. Nos adultos, também tem a função de atrair a fêmea para o acasalamento.