CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Quem disse que machismo é coisa só de homem?
(Herbert Haeckel)
Mamertina Gonçalo Alves é infeliz. A
duplicidade de vida que escolheu ter causou-lhe, principalmente, essa
infelicidade.
Ah! Dizeis-me, agora, que seu peculiar
pendor para as intrigas familiares seria o motivo de todo o seu infortúnio!
Inclino-me para não vos contestar integralmente, porquanto me é mais útil crer
que Mamertina não é uma pessoa de má índole... É, sim, uma pobre coitada, como
se costuma dizer nas cercanias. Paupérrima de espírito, apiado-me dela!
Escondia de seus pais sua condição, ou,
pelo menos, pensava estar secreta para eles. Ledo engano!
Escreveu-me há alguns anos Ariano, pai de
Mamertina, revelando-me suas preocupações com a desditada filha. Logo, é de
supor que ele tinha plena ciência do que se passava com Mamertina.
Aconselhei-o, à época, paciência e prudência, e que enxergasse a situação com
naturalidade, porque assim deveria ser.
Longe do olhar fiscalizador,
principalmente de seus pais, que lhe oprimia assaz, decidiu que viveria
afastada do aconchego familiar. Não seria difícil, haja vista dizer que amava a
família somente para inglês ver.
Novos ares, entretanto, não lhe trouxeram
mudanças significativas. Continuava a ser a mesma pessoa.
Numa tarde de sábado primaveril, conheceu
Amapola, formosa moça, de dulçor incomparável e de uma jovialidade
impressionante. Foi encanto à primeira vista.
Assediou-a Mamertina o quanto pôde, até
que Amapola não resistiu às promessas de uma vida de regalos, de abastança -
ela que vinha de humílima família. Juntou, pois, seus pouquíssimos pertences e
foi morar com Mamertina.
Quiçá tenha eu caído no oblívio e,
involuntariamente, neguei-vos importante informação: Mamertina era machista,
incuravelmente machista. Haveis de perguntar-me: como é possível uma mulher
machista? O machismo não é, como podeis erroneamente supor, algo inerente ao
sexo masculino. Decadente defeito, o machismo tem mais que ver com o repertório
moral do indivíduo que com o seu gênero. A masculinidade tóxica não é uma
exclusividade dos homens.
E, como nem tudo são flores eternamente,
Amapola caiu em desgraça: quando não apanhava pela manhã, à tarde o
espancamento era certo.
Sete longos anos durante, Amapola foi
agredida psíquica e fisicamente por Mamertina.
Hoje, Amapola fez-se morta para
Mamertina. Vive feliz noutro casamento, em que amor e respeito lhe são dados
integralmente. Amapola, enfim, voltou a ter o brilho nos olhos.
Mamertina, que nunca soube o que é o
verdadeiro amor, lamenta-se da sorte que a acompanha. Todavia, nada fez, nem
faz, para progredir moralmente: sempre que pode, esmera-se em plantar a
discórdia na família que tanto diz amar...
Paupérrima de espírito, apiado-me dela!