Kama Sutra
(Herbert Haeckel)
Logo cedo, quase junto ao sol a despontar no horizonte, liga-me
Finório Sabará. Aflito. Muito aflito. Muitíssimo aflito.
Pedi-lhe calma. O
desespero é o adubo para o florescer do caos. Por isso, antes de qualquer coisa
“ir para o vinagre”, como diziam antanho, respirai fundo e tende calma... muita
calma!
Para tudo, há uma solução - inclusive para a morte, conquanto não
vos cansais de dizer que para a morte não há o que se fazer... Enganai-vos:
inumação ou cremação. Eis, uma ou outra, o remédio plenamente eficaz!
Mas, não foi para filosofar que vim hoje até vós, caríssimos
leitores...
Como vos ia dizendo, Finório estava aflitíssimo. Narrou-me, com
impressionante - aprende, parvo ministro, como se escreve! - riqueza de
detalhes, o que o afligia. Não vou permitir-me reproduzir aqui esses
detalhes... Há crianças na sala!
Há três dias, pensou Finório ter uma grande ideia. Foi a uma
livraria e comprou um “manual” com gravuras modernas da obra de Vatsyayana -
mas, não o Mallanaga. Iria, com sua prestimosa esposa, Marcionília Sabará,
testar as posições do milenar Kama Sutra. Todas elas.
Ontem, depois de muitos preparativos - puseram até um tatame no
chão da sala de estar - iniciaram os trabalhos.
Uma, duas, três posições ... A coisa foi ficando, cada vez mais,
digamos assim, interessante...
O ser humano é assaz enigmático: nunca se satisfaz com nada. Isso
não é ruim! Graças a esta inquietude, as ciências avançaram!
Finório Sabará é uma destas pessoas, deixai-me ver, talvez não me
expresse com perfeição, visionárias... Isso! Se Isaac Newton não houvesse
observado a maçã deixar-se conduzir pelos efeitos da gravidade, Finório,
certamente, observaria a tal maçã, ou, quem sabe até, uma banana...
Finório e sua dedicadíssima consorte não se limitaram a copiar as
posições do exemplar do Kama Sutra. Eles, principalmente ele, queriam mais. Por
sugestão de Finório, criariam uma posição, a partir de outras já registradas naquela
que era uma das mais antigas obras literárias acerca do comportamento sexual
humano. Mas, com muito mais tempero... Tempero tropical. Pimenta!
Dirigi-me à casa de Sabará. No caminho, arquitetava uma solução
para a desdita do amigo casal. Nada me ocorreu.
Passei num chaveiro, como havia prometido. E também não deixei que
o chaveiro visse a cena.
Toda a insanidade do mundo é pouca para descrever o desatino que
vi.
Finório e Marcionília estavam literalmente enroscados. Não sei
onde começava um, nem onde terminava o outro.
Não consegui, sozinho, desenovelá-los. Acudiu-nos o corpo de
bombeiros.
Não quis, depois, ver o vídeo, gravado pelo telemóvel de Finório,
até mesmo para entender o que de fato acontecera, mesmo Finório a insistir que
eu o visse.
O olhar de Marcionília Sabará, desde a minha chegada, era o da
máxima vergonha encarnada. Não poderia eu agir de modo a agravar o seu
incomensurável desaire.
Por conseguinte, também tive de dizer adeus às deliciosas empadas
de Marcionília... Quanta dor!
No caminho de volta ao aconchego do meu lar, passei numa livraria.
Cheguei, admito, a folhear o malsinado manual que causara todos os problemas,
sobretudo a renúncia imperativa às oníricas iguarias de Marcionília Sabará.
Mas, em lugar dele, levei um livro de receitas de empadas. Fá-las-ei muito
brevemente, assim que eu consiga fazer com que caia no oblívio a posição da
flexão invertida...