CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Café “gourmet”
(Herbert Haeckel)
Velório é uma local de respeito a quem se desenvencilha da materialidade orgânica e experimenta novamente as sensações da verdadeira vida. A morte é um processo revolucionário, em que os despojos carnais ingressam, irremediavelmente, em curso de degradação biológica e química, causando, muita vez, o transtorno psíquico naquele que não entende, ou não quer entender, a fenomenologia da morte, diante da plenitude e da ininterrupção da vida.
Policio-me, portanto, com relação à minha conduta para com o recém desencarnado, para que eu não atrapalhe o seu trânsito em retorno à Pátria dos Espíritos.
Espero, sinceramente, que assim também ajam os que se dispuserem a velar meu corpo quando da minha Grande Viagem!
Guardando-me em preces silenciosas, em homenagem a Fortunato Modesto, que abandonara o corpo físico em razão de um susto que levou, fui interrompido por Anísia Tamarineiro, com sua peculiar deseducação. Quão efêmeros me pareceram os longos e prazerosos doze anos durante os quais eu não a vi!
Afastei-me do ataúde. Antes que eu pensasse em fugir dali, Anísia segurou-me pelo braço. Perguntou-me sobre tudo o que achava importante saber, para que, assim que saísse das exéquias de Fortunato, pudesse transformar em maledicências. Respondia-lhe sempre com um “não sei”.
Cansada, quiçá, de tanto perguntar e nada obter de resposta concreta, mudou de assunto. Lembrou-se do velório de Argemiro Borba, quando nos havíamos encontrado pela última vez. Falou-me do inesquecível café, que não cansou de beber enquanto tecia os mexericos sobre Argemiro e suas supostas teúdas e manteúdas, sob o olhar perplexo da pobre e inocente viúva, Dona Osvaldina...
Ah! O café! Elogiado por todos! Uma verdadeira delícia, segundo os presentes no velório de Argemiro! Qual o segredo de saborosíssima bebida? Confesso-vos, meus caríssimos leitores, que não bebi o café - o açúcar, para mim, altera sensivelmente o gosto da bebida. Não aprecio café adoçado. Acaso queirais oferecer-me um café, dai-mo sem açúcar, por favor!
- Pois é, Anísia... O café... Eu é que o fiz!
- Até hoje eu não me esqueço! disse-me Anísia, acenando para Santiaga Fontes, outra reconhecida mexeriqueira, chamando-a para a palestra.
- Mulher, lembra do café que bebemos no velório do depravado Argemiro Borba? Foi ele quem fez! apontando para mim.
Santiaga, que poderia eu supor ser ela a mãe da inveja, balançou a cabeça, como a duvidar. Todavia, pediu-me a receita.
- Acho improvável repetir o mesmo sabor! disse-lhes com extrema convicção... Explico: como não havia uma gota de água na casa do defunto Argemiro, usei a mesma água que banhara o cadáver, antes de colocarem-lhe a mortalha. Estava numa bacia no fundo do quintal... Peguei dessa água! Eis o segredo do inolvidável café!
Depois disso, quando elas me veem na rua, mudam de calçada.
Não pretendo contar-lhes que o defunto de Argemiro, na verdade, não foi banhado, porque a única água que havia era, justamente, para o café a ser servido no velório.
Melhor assim como está... Não correrei, pois, o risco de anojar-me de suas desagradáveis presenças!