Estava relutando em escrever qualquer coisa sobre o Acordo Ortográfico. Mas, sinceramente, não me poderia furtar de lançar-lhe as merecidas pedras (sutilmente!)...
Primeiramente, a tal reforma, como outras que lhe antecederam, serve, tão-somente, para brindar aqueles que não têm domínio no vernáculo. E por uma questão de praticidade, de ser o caminho mais curto, menos penoso, seria melhor achincalhar o idioma a promover melhorias no seu ensino.
É de bom alvitre assertar que não sou contra o dinamismo de uma língua. Ao contrário, entendo que o fenômeno lingüístico é, por excelência, dinâmico. Entretanto, devemos ir com calma!
Esse dinamismo deve ser natural e, principalmente, adequar-se ao gênio do idioma. É, também, uma questão de necessidade, uma vez que novos conceitos, novas coisas passam a existir, o que impõe ao idioma a transformação e a criação (criteriosa) de novos vocábulos. Neste sentido, há, inclusive, neologismos aceitáveis, quando existe um critério para a formação do novo vocábulo – quando sem critérios ou, até mesmo, desnecessários, os neologismos são inaceitáveis e, conseqüentemente, considerados vícios de linguagem. Mas, forçar mudanças simplesmente por mudar, para fazer valer os desígnios de uns poucos, para beneficiar este ou aquele, ou porque uma parcela das pessoas desconhece o idioma é, no mínimo, uma aberração.
E mais: a justificativa de unificar o idioma é totalmente descabida. Por que unificar o que foi diferençado ao longo do tempo, em virtude de fatores culturais?
Outra coisa interessante a notar é que sempre há quem ganhe nessas reformas ortográficas (menos o idioma, é claro!). Se observarmos, há sempre um gramático, um lexicógrafo a editar sua obra, estampados na capa os dizeres: «atualizado de acordo com as novas regras ortográficas», ou coisa parecida – muita vez, a obra é lançada antes mesmo da vigência da reforma, como já aconteceu no passado. Como o compromisso desses gramáticos e lexicógrafos é, tão-só, com o seu bolso, não se estão, nem um pouco, importando com o vernáculo – ele que vá para os diabos!
As justificativas para a reforma são as mais estúpidas. A reforma em si é estúpida, porque não possui critério algum (pelo menos os de índole positiva), senão a conveniência de uns poucos e a sua complacência com a deseducação.
Há na reforma, também, como não poderia deixar de ser, incongruências incontáveis. Somente para ilustrar, tem-se o caso dos acentos diferenciais.
Em particular, o diferencial que foi abolido no vocábulo pára (verbo). Segundo os propositores da reforma, seria o contexto que indicaria ser um verbo ou preposição. Será isto possível? Vejamos: acidentalmente, vi um anúncio publicitário de uma loja de móveis e eletrodomésticos, com uma chamada assim: «Para tudo. O Ricardo cobre tudo.». Seria o vocábulo para verbo ou preposição? Os dois; poderiam ser os dois... E o contexto? O contexto não ajuda em nada... Outro exemplo: «Maria para João». Tanto poderia ser um verbo, quanto uma preposição. O contexto tem como indicar se é um verbo ou uma preposição? Definitivamente, não! Como bem se pode ver, a falta de critério lógico foi decisiva para esta cilada promovida pela própria reforma.
Vamos continuar, um pouco mais, a brevíssima análise sobre os diferenciais. Péla (substantivo feminino) passa a ser escrito pela, como pela (verbo) e pela (contração da preposição por + artigo a). E aí vai: «Pela rua abaixo». Tem-se um substantivo feminino, um verbo ou uma preposição? Tanto faz. «Pelo curto»... Tem-se um substantivo masculino, um verbo ou uma preposição? Também, tanto faz! Não é possível, simplesmente pelo contexto, dúbio que é, definir, decifrar o que está escrito, o que impossibilita a comunicação – saliente-se que ler não é tão-somente desvendar um sistema de códigos; é, além disso, interpretar o que está codificado.
Se era para «facilitar» a comunicação – objetivo principal do idioma (é necessário afirmar que somente se pode dizer que há comunicação quando o emissor é compreendido pelo receptor) -, a reforma piorou-a.
O acento agudo do u tônico nos verbos argüir e redargüir, em suas formas rizotônicas, caiu. Então argúo passou a ser escrito arguo; argúis passou a ser arguis; argúa passou a ser argua (observe-se que não há qualquer indicativo de que o u seria tônico); argúem passou a ser arguem (aqui, ainda é pior: sequer se pode dizer que o u seria pronunciado, quanto mais que ele seria tônico)... Quero ver como será a prosódia destes vocábulos à leitura...
O trema... Segundo os proponentes da reforma, o trema cai, mas o u continua a ser pronunciado... E eu que não conheço os vocábulos da língua portuguesa, quando saberei que a letra u é ou não pronunciada? Nunca...
E o que dizer do acento circunflexo das palavras terminadas em ôo e em êem? Qual a justificativa para aboli-lo? Como muitos tombam ao escrever, grafando com diacríticos palavras que não o possuem ou deixando de grafá-los quando exigidos, melhor seria abolir alguns (de acordo com o entendimento de quem tramou a reforma).
E com relação ao hífen? Praticamente, nada foi alterado (muito embora se tenha feito um alarido). Aboliu-se em alguns pouquíssimos casos... Noutros, pouquíssimos também, acrescentou-se... É como chover no molhado...
Se a linguagem é qualquer sistema de sinais, por meio dos quais os seres se comunicam, no intuito de transmitir e receber mensagens – de informação, de expressão de sentimentos etc. -, há de existir efetividade nessa linguagem, ou não se terá a comunicação. E como a escrita é a representação gráfica da linguagem oral – que se baseia na emissão e recepção de sons, que quando combinados formam os sinais significativos das palavras -, nada mais impositivo do que escrever de forma inteligível. E a reforma, definitivamente, não colabora com este desiderato.
Portanto, continuarei a escrever como antes. Quem quiser que me «corrija»!