CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Ajoelhou, reze!
(Herbert Haeckel)
Contou-me
este ocorrido Honório Cafezeiro. Peço vênia para aqui trazer a narrativa à
tona. Talvez eu não seja perfeitamente fiel ao que me foi contado. O tempo costuma
embotar a memória. De defunto, Honório já soma quarenta anos... Ademais, dizem
por aí, e por aqui também, que quem conta um conto aumenta um ponto. Desculpai-me,
pois, se me distanciar em demasia daquilo que realmente aconteceu!
Não
havia energia elétrica em Morro Velho da Boa Esperança. Lâmpada elétrica? A
novidade adventícia do século XIX não lhe visitara até então, já passados quase
cinquenta anos do século XX.
Sob
a luz débil de candeias, os moradores sentavam-se à frente de suas casas, até
que chegasse a hora de recolherem-se.
Depois
das 22 horas, portas e janelas todas fechadas. Nenhuma flama a queimar
torcidas. Nenhuma alma viva a circular pelas ruas. Vez ou outra, gritos ou
gargalhadas, vindos da rua de trás, rompiam, violentamente, o silêncio da
noite.
Temiam
todos, na escuridão desafiadora, topar com o fantasma de Bento Oliveira,
capataz morto pelo seu senhor de engenho, quando foi flagrado sem as calças nos
aposentos da sinhá - a ciência dos cornos costuma fazer do pacífico homem um
animal feroz! Conheço um que esmurrava, irascível, a parede toda a vez que
supunha um deslize de sua amada... Menos mal! Pelo menos, não encostava,
covardemente, os dedos na mulher, coitada! Costumo dizer, para quem me procura
para os conselhos das coisas de família, que o corno é o verdadeiro culpado do
adorno frontal que recebe de presente. Quem procura acha!
Morro
Velho da Boa Esperança contava com quatro ruas, três delas atrás da Igreja de
São Pancrácio, padroeiro local, desde os tempos de freguesia. Segundo o padre
Gentil, as ruas atrás da igreja eram as mais frequentadas por Bento Oliveira -
o tal fantasma de que vos falei há pouco. Deviam, portanto, ser evitadas. Era
um imperativo. Além disso, a última delas, a rua do Sossego, abrigava a casa de
Janete, que uma ou outra língua ferina dizia ser ela “mulher de vida fácil” -
fácil para quem não a vive... ide prestar serviços num prostíbulo para ver o
que é bom para a vossa tosse! A boa conduta católica, cobrada com vigor por
padre Gentil, proibia, inclusive, que se andasse pela rua do Sossego. Nem de
dia! O desobediente seria sumariamente excomungado. Palavra do padre Gentil.
Assim seja!
Muitos
até quiseram a expulsão de Janete da cidade - pequena no tamanho, grande na
hipocrisia. Mas, assentiam aos apelos do padre Gentil, que invocava a prática
do perdão:
- E quem nunca pecou que atire a primeira pedra! dizia ele, repetindo a máxima cristã, já em desuso naqueles tempos.
- E quem nunca pecou que atire a primeira pedra! dizia ele, repetindo a máxima cristã, já em desuso naqueles tempos.
O
saudoso Honório voltava do casamento da filha de Amâncio Cordeiro, o mais
próspero fazendeiro daquela região à época. Montado em sua mula, aproximava-se
de sua casa, na praça do mercado, em frente à igreja, quando teve a ideia de ir
à rua do Sossego, movido por uma, não se sabe de onde vinda, invencível
curiosidade.
Passava
da meia-noite. Todos dormiam certamente. E o padre Gentil nunca saberia de seu
deslize. Nunca... Nisto, o mais importante: estaria, pois, livre da excomunhão!
- pensou com convicção.
Um
salão suficientemente iluminado, em que o perfume enjoativo de flores se
misturava ao odor forte de querosene e do fumo queimado, tornando a atmosfera
local desagradável, descortinou-se aos olhos de Honório Cafezeiro. Algumas
mulheres seminuas, a mexer morosamente seus corpos numa dança lúgubre. De onde
vinham tantas?
Ao
fundo, à direita, num sofá de veludo vermelho rubi, padre Gentil, despido da
sotaina, segurava uma garrafa de cachaça, já pela metade, e tinha, genuflexas a
seus pés, Janete e uma outra - que não posso revelar o nome, porque gestou um conhecido
magistrado - que se ocupavam com as bocas nas partes íntimas do espalhado
sacerdote, que dizia, a deleitar-se, entre um gole e outro:
-
Amem! Amem-me!