CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Cidadãos de bens
(Herbert Haeckel)
Polifemo Almeirão sempre disse cultuar os “bons costumes”. Sempre disse ser, como de cotio se diz hoje a canalha numerosa, “cidadão de bem”.
Nasceu, em verdade, num berço de pobreza e desamor. Com quase nada para comer, aos sete anos, Polifemo, que ainda disputava com outros três irmãos - que sequer tiveram um enterro digno - o peito combalido da mãe, Dona Jurandira - que se suicidou alguns anos depois, após profundo desgosto, segundo comentavam na antiga Rua Santa Cruz, na qual trabalhava, e também onde tombou o poeta Costa - prometeu a si mesmo que não passaria fome, mesmo que houvesse de pagar enorme preço.
Não lhe sendo apetecível a conciliação do estudo com o trabalho, Polifemo, aos treze anos, abandonou a escola e foi-se empregar na chapelaria do português Amálio Coutinho.
Aos dezenove anos, Polifemo ficou com a metade dos bens de Coutinho, deixada em testamento, do qual discordaram remuito, com razão, mas baldadamente, os descendentes do chapeleiro lusitano.
Neste mesmo ano, casou-se com Anadiômena Fagundes, filha única do viúvo Estélio Catarino Vilarreal do Amaral Fagundes, homem mais rico da região, que se jactava da descendência do Barão de Guaitacá, seu avô materno. Estélio, a propósito, sempre comentava suspiroso, num e noutro canto, que não encontraria um pretendente suficientemente desavisado, e com olfato mui defeituoso, para desposar sua filha, de temperamento difícil, de uma feiura incontestável e de tez escabiosa, sem falar no daninho hábito de banhar-se somente uma vez por semana quando nos dias mais quentes da primavera e do verão.
Castilho Todeschini, numa carta que me mostrou Adília Coutinho, poucos meses antes de ter seu nome publicado no necrológio do Diário de Notícias Gonçalense, discorreu sobre as estranhas coincidências que envolveram a morte de pai e filha, e de como a premoriência de Estélio Fagundes prestou incomensurável beneficio a Polifemo.
O homem, vou aqui generalizar, embora não seja eu adepto dessas generalizações, nunca está contente suficientemente com o que tem ou com o que é. Sempre quer mais. Há um limite, ou, pelo menos, deveria haver, é certo, na ambição, para que ela não se transforme em doença. Todavia, Polifemo nunca teve limites. Para ele, o pouco é nada, o muito é pouco e o tudo é o desejável.
Mudou-se para próximo ao paralelo 15º, porque lá é que se decidem as coisas.
Há alguns anos, conheceu o venal e corrupto juiz Rubson Almirante, que ingressou na magistratura graças aos obséquios de seu sogro, que, temendo a sorte da filha que contraíra núpcias com um ordinário advogado, deu-lhe as questões das provas.
Uma grande amizade, ou, como querem alguns, uma grande sociedade, não só na comilagem, formou-se entre Polifemo e Rubson.
Contou, certa vez, o cartunista Nilo Rabelo, numa churrascada na casa do empresário potiguar Torres da Cruz, para todos que quisessem ouvir, que Polifemo e Rubson compartilhavam o amor e a cama de Felícia Almirante, consorte do juiz larápio - além da sífilis, é claro!
Nilo Rabelo não tem mais como confirmar essa história. Morreu, alguns dias depois de revelar espinhoso segredo, quando saía de um bar na 109 Sul. Foi atropelado pelo motorista de Polifemo. Uma grande coincidência...
Com a igreja - ah! olvidei-me de dizer-vos que Polifemo fundou uma igreja neopentecostal, que, como ele mesmo dizia, era uma verdadeira mina de ouro! - arrastando a cada dia mais e mais pascácios, digo, fiéis, Polifemo resolveu entrar para a política. Candidatou-se a deputado. Foi eleito, usando assumidamente "caixa 2".
Mas, isso é de somenos. Já inclusive pediu desculpas pelo deslize, assim como pediu desculpas pelos crimes de formação de quadrilha, sonegação de impostos, receptação, estelionato, redução à condição análoga à de escravo, tráfico de entorpecentes, extorsão, constituição de milícia privada, homicídio, lenocínio, estupro de vulnerável, pedofilia, tráfico de pessoas e mais alguns outros...
Como Polifemo Almeirão, que se assume ungido por seu deus, é um patriota, é um defensor da família tradicional e da moral e dos bons costumes, tem o perdão, o beneplácito dos que também se dizem cidadãos de bem. Segue Polifemo a vida normalmente, e continua a delinquir a flux...
Bandido, para eles, cidadãos de bens, é o Sapo Barbudo!