CRÔNICAS - Herbert Haeckel
O Bom Patrão
(Herbert Haeckel)
Amiúde, as pessoas têm desconectado suas práticas de seus
discursos. A hipocrisia balançou o berço da humanidade... Hoje, ainda embala o
sono de muita gente!
Roselino Xisto abriu seu próprio negócio. Sentia que corria
em suas veias o empreendedorismo, desde tenra idade, quando ainda sujava os
fundilhos ao postergar a saída do excremento sólido, somente para manter-se na
brincadeira por mais um tempo com os outros meninos. Rendeu-lhe isto, a propósito,
um apelido que fazia referência a... Deixemos isso de lado!
Uma pequena representação de uma famosa marca de artigos de
couro foi seu primeiro negócio, inaugurada na esquina da Rua do Asilo com a Hugo
do Tílburi, no centro de Nova Rainha.
A lojinha era uma empresa familiar. Contou, para isso, com a
ajuda de Samir Gamaleão, seu filho, tão hipócrita quanto o pai, que fora à Bahia
aprender Matemática – é o que ele, Samir, diz, conquanto, aqui e acolá, pede
ajuda para somar dois e dois – e voltou com o tal diploma em uma das mãos, com
a cabeça vazia e a outra mão à frente. Lá fora, não lhe deram emprego. Há ainda
pessoas com higidez mental neste mundo...
A empresa começa de prosperar. Com oito empregados já, Roselino
abriu outra loja ao lado da primeira, porque não queria que seus olhos se
distanciassem dos negócios... Aprendeu estas coisas com o velho Calixto Xisto, que ordenou
usassem as madeiras de sua cama para a confecção do caixão quando passasse
desta para melhor. Um avaro incorrigível que fez escola. Seu corpo macilento foi
para a necrópole num saco de linha, seguido por dois cachorros esfaimados que farejaram
aquela carcaça imprestável. As madeiras foram vendidas por Roselino, que apurou
alguns cruzeiros e os usou para dar de entrada nas alianças que ofertou a Aurismália,
com quem contraiu núpcias meses depois, muito mais de olho no vultoso dote.
Roselino Xisto acumulou cabedal. Se lhe aumentava um centavo
no patrimônio, mais cúpido se tornava. Como não podia tirar de sua clientela,
tirava de seus empregados, pagando-lhes bem menos do que deveria pagar. Ainda
assim, jactanciava-se, sempre que possível, de ser um “bom patrão”, porque,
segundo ele, pagava os estipêndios aos seus subordinados, e para seduzi-los,
organizava, uma e outra vez, um convescote com os empregados e seus familiares.
Tudo por conta dos bônus recebidos da fábrica que representava e que não poderiam ser
vendidos...
Devotado na canguara de Sinhô Salustiano - que ciência bem
guardava na moagem da cana e no fabrico da cristalina bebida – Roselino, nas
vésperas das feiras, costumava estar com seus confrades, quando, após embriagar-se, repetia vitupérios a Isabel, a dita Redentora, por ter abolido a
escravidão.
Cidade suja, onde proliferavam ratos aos milhares, Nova
Rainha experimentou os horrores da peste bubônica.
Estávamos reunidos na casa de Veridiana Parahyba, com quem
Roselino mantinha secreto romance, para os festejos do santo padroeiro.
Enquanto sorvia um licor num cálice arroxeado de um conjunto comprado na feira
de Santana do Igapó, Roselino apalpava subtilmente, quase ocultamente, o peito
de Veridiana e discursava sobre a moral e os bons costumes e de como estavam
escassos naqueles dias. Neste instante, chega a notícia de que Belarmindo Capistrano
sucumbira à doença do pulmão. Seguiram-no rumo ao cemitério Ordélio Madureira,
Tertuliano Cacimba, Onofre Gonzaga e tantos outros... Pânico instalado.
Por ordem do alcaide, ninguém nas ruas!
Todavia, Roselino, que nutria doentio amor ao cobre, não
admitia ver suas lojinhas fechadas por causa da peste bubônica.
Com febre – não decorrente da peste, mas por ver seu negócio
parado – Roselino chamou seus empregados e abriu o seu comércio, rebelde à
ordem dada pelo prefeito. Nada vendeu, porque não havia quem comprasse. Mesmo
assim, as lojinhas não fecharam as portas.
As pessoas não chegavam para comprar. Somente chegavam as
notícias de que um e outro teriam partido para o outro mundo.
Dias depois, talvez dez, não me recordo, Roselino Xisto, que
dormira, tão-somente para não ficar distante de sua riqueza, várias vezes no depósito da lojinha, junto aos ratos, fez seus sucessores.
Na sua lápida, colocada anos depois de seu passamento, está escrito
“O Bom Patrão”.
Disso, eu não tenho dúvida: patrão bom é somente aquele que
está sob sete palmos de terra!