CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Há gostos para tudo
Eis, aqui, a minha confissão: não me surpreendo mais com as pessoas,
mesmo quando praticam o que eu poderia classificar como insólito, ou impossível.
A criatividade humana é algo impressionante. Destrói muros do aceitável, do
ponderável.
Frutuoso Amuzembele saiu de Angola porque se opunha a
Agostinho Neto. Também Jonas Savimbi não o aturava.
Aportou clandestinamente em terras ianques, e só não foi
expulso de lá porque fugiu a tempo.
Chegou à Bahia em 1979, quando o debuxo da
redemocratização no Brasil recebia seus primeiros traços. Na mala, uma calça de
algodão, duas camisas, muitas cascas de pau-de-cabinda e uma lata com um
punhado da terra vermelha do Cazenga, para lembrar-se da congolesa Jamila. Ah!
Jamila...
Conseguiu um muquifo, ao cair nas graças da puta Analdina, na
Maciel de Cima, próximo ao casarão onde morou José Sotero Maciel de Sá Barreto.
Comida e cama de graça. Analdina até mudou de profissão em nome do amor a
Frutuoso, e foi vender quitutes na rua do Tira Chapéu, quase a chegar na Casa
dos Sete Candeeiros.
Todavia, não demorou muito para Frutuoso cuspir no prato em
que comeu... Cuspiu na cama também.
Conheceu a desafinada e desenxabida cantora Eva e com ela se
amancebou, para ir morar em sua casa na Fazenda Garcia.
Sem profissão, Frutuoso começa de vender folhas, raízes e
cascas de árvores. Uma pequena barraca no Largo Dois de Julho, pouco a pouco,
foi-lhe rendendo alguns dinheiros, a ponto de poder livrar-se da voz irritante
da dissonante Eva.
Deu, enfim, este passo, e, novamente inupto, mudou-se para a
Carlos Gomes.
Eva arremessou-se do Elevador Lacerda, depois de um grotesco espetáculo vespertino ao tentar cantar,
embriagada, “My Funny Valentine”. Na conta de Frutuoso, dois suicídios...
Analdina, anos antes, parou embaixo de um caminhão na Ladeira da Praça.
Seu corpo destroçado, enquanto não chegava o rabecão do Nina Rodrigues, ficou a
impedir a saída de uma viatura do Corpo de Bombeiros.
A freguesia aumentava. As empregadas domésticas das Mercês e
circunvizinhança cuidavam para espalhar os atributos viris de Frutuoso, denominado
por elas de “Angolano”.
Tornara-se habitual, após a propaganda boca a boca, a
frequência de damas, que se faziam de honestas aos olhos da sociedade, na
barraca de Frutuoso, o que o compeliu a abrir uma ervanaria na rua Ruy Barbosa,
que não durou por muito tempo. O comércio de folhas foi substituído por outra
atividade, muito mais prazerosa e rentável: Frutuoso passou a atender consultas
divinatórias.
À porta de seu consultório, uma placa feita de madeira,
escrito com letras brancas “Pai Angolano”. Ao adentrar, uma saleta com um banco
de Kombi a servir de sofá para as consulentes, duas prateleiras ainda com o que
restara de algumas ervas e cascas de árvores e uma secretária de sucupira.
Depois da porta pintada com tinta a óleo verde, outra sala, na qual Frutuoso
realizava as sessões de adivinhação, com uma mesa coberta por uma toalha
branca, em que repousava uma peneira de palha, rodeada de colares de contas,
com dezesseis búzios, um pedaço de morim branco, uma vela que ficava acesa
somente durante as consultas e uma terrina de porcelana, comprada num
antiquário próximo ao Sebo Brandão, onde eram depositadas notas graúdas de
cruzeiros. Atrás da cadeira em que se sentava Frutuoso, uma outra porta, com
uma cortina de miçangas coloridas, que dava para um pequeno quarto, com uma
cama e uma bacia de ágata no chão, para a consulente banhar o órgão copulador,
depois de experimentar os efeitos do pau-de-cabinda em Frutuoso.
A fama de Frutuoso já ia longe. Os comentários nas festas
vesperais de todos os domingos do Clube Cruz Vermelha, que nenhuma relação tinha
com a instituição humanitária, chegavam como notícia redentora para muitas
patroas do Canela, Corredor da Vitória e Graça.
Berengária Almeirão tomou conhecimento do Pai Angolano por
meio da manicura Jandira Paixão. Ao chegar em casa, teve a confirmação, pela
criada Valdivina, dos predicados de Frutuoso.
Sem detença, cuidou Berengária de vestir sua melhor calcinha,
despediu-se do depauperado marido que, como todo o castigo para corno é pouco,
ainda se recuperava da fratura do tarso, e foi-se consultar com o Pai Angolano.
Passava um pouco das três horas da tarde, quando Berengária
chegou ao consultório de Frutuoso, digo, Pai Angolano. Foi logo a dizer que não
cria em superstições, em bruxarias e coisas afins, e que sua vinda tinha um
único desiderato: mitigar a merencória solidão com o falo rijo de Pai Angolano.
Frutuoso tinha seus segredos. Antes de começar a consulta,
sorvia meia chávena do chá de pau-de-cabinda, que lhe garantia a tão comentada
e festejada virilidade.
A ver que Berengária estava mesmo decidida a pular a etapa divinatória,
não restou a Frutuoso outra opção senão aumentar a dose do chá, para que
houvesse, conforme imaginou, um resultado mais rápido. Em vez de meia xícara,
tomou três. Mas, como se diz cá e acolá, de remédio para veneno o que muda é a
dosagem!
Já por cima de Berengária, Frutuoso começa de sentir uma dor
no peito e um queimor a subir para a cabeça. Não deu outra...
Após o grito, os dentes cerrados, e Frutuoso desaba por
sobre Berengária, que ainda gemia de intenso prazer.
Infarto agudo do miocárdio.
Dois dias depois, já a exalar a fedorentina peculiar, foi
feito o levantamento cadavérico, quando deram pela falta de uma parte do corpo
de Frutuoso.
E foi inumado assim, a faltar um pedaço.
Há alguns meses, em visita à Gisela Almeirão, notei, sobre
um balcão, um estojo de muiracatiara adornado com gemas de jaspe vermelho, com uma plaqueta
com a inscrição “Pai Angolano”.
O taxidermista Apolinário Lisboa, que procurei dias depois, contou-me
sobre a inusitada peça, trabalhada há mais de trinta anos, e como ela ficou após
o castão de prata a adorná-la.
Conhecido isto, não me canso de dizer que para todas as
coisas há gostos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário