CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Dar de Beber ao Susto
(Herbert Haeckel)
Já dizia a Mariquinhas que dar de
beber à dor é o melhor...
Consegui, finalmente, uma
entrevista com Eugênia de Castro. Um contato efêmero, por sua idade avançada -
não sei ao certo quantos natais possuía nas contas, porque a sua vaidade não
lhe permitia revelar-me tão bem guardado segredo... Mas, nos meus cálculos, mais
de nove décadas haveriam de ter passado, desde o dia em que lhe deram à luz...
À entrada, um vestíbulo mal
iluminado, com algumas poucas, porém bem cuidadas, plantas e o cheiro do chá a convidar-me
para entrar, aguardava-me Vicente, também alfacinha como Eugênia, e que com ela
veio de navio das boas terras de além-mar.
Na sala de estar, uma janela
descortinava a rua calma, a apresentar-me mais proximamente as flores roxas da
quaresmeira no apogeu de março, e a deixar adentrar o sublime canto entrecortado
de agudos e graves de um sanhaçu-cinzento. Ao fundo, um balcão de madeira
escura, e, sobre ele, uma licoreira bico de jaca, presumivelmente de cristal, ao
lado de um galo de faiança portuguesa, cuja cauda fora parcialmente quebrada.
Na parede, descascada ao rés do chão
decerto pela umidade, uma fotopintura de Eugênia moça, de bordas desgastadas
pelo tempo... Quiçá estivesse ali para denunciar sua verdadeira idade...
À direita, um canapé de jacarandá
no estilo neorrococó, com uma pequena almofada em cada uma das extremidades,
repousado sobre um tapete com toda a certeza de Arraiolos.
De um dos cômodos da casa, vinha
o som, quase inaudível, de um fado. Pensei, num primeiro momento,
equivocadamente, tratar-se da inolvidável cantante lusíada Amália Rodrigues. Mas,
não reconheci a canção, o que me levou a descartar a possibilidade de ser realmente
a Rainha do Fado. Era outra Rebordão, a prima Fábia, que, desde aquele
instante, imensamente me encantou.
Enfim, pude conhecer Eugênia. Sentamo-nos.
Foi-nos servida uma infusão de casca de limão, numa chávena de porcelana de
cores garridas.
Fiz a comprovação de que Eugênia possuía
mesmo uma memória invejável. Não fora nada parcimonioso o retratista Álvaro
Braga quando dela falou...
A palestra com Eugênia tinha uma
razão. Soube, por intermédio do faiscador Hermínio Oliveira, que ela conhecera
de perto um graduado oficial do exército brasileiro, que participou ativamente da
repressão durante a ditadura militar. Daí, meu interesse, no afã de conhecer
mais da história, além do que a minha prática, em defesa de anistiados
políticos, restritamente me permitia conhecer.
É nas conversas de alcova, quando
os obséquios carnais inspiram as mais inimagináveis inconfidências, que podemos
realmente conhecer os meandros da personalidade humana.
Reputava, sinceramente, Osvaldino
Santa-Fé por um homem acerbo, de uma supina rudez, sempre mal-humorado e a pregar
coices em cima de todos. Uma verdadeira cavalgadura com certidão de batismo!
Por fim, já bem adiantada a hora,
falei a Eugênia sobre o machão Osvaldino Santa-Fé e dos seus modos incivis,
quando fui interrompido açodadamente:
- Osvaldino? Osvaldino Santa-Fé? Uma
rapariga! Uma afoita e esfaimada mocinha! Uma meretriz de quinta categoria! Pedia-me
emprestado um penhoar de renda e o vestia por sobre umas calcinhas esgarçadas
que as guardava no quartel e as trazia sempre consigo e se deitava com o ativo Vicente,
sob ameaças de mandá-lo prender e torturá-lo até a morte por subversão! Derretia-se
por um priapo! Nunca vi igual! Inverti as tabuinhas da gelosia, só para
espreitar o safadismo daquele pervertido paneleiro!
Espaventado com a revelação,
lembrei-me da Mariquinhas... Não somente dar de beber à dor é o melhor! Ao
susto, também valem umas ginjinhas!
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