CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Ainda bem que não existem milagres
(Herbert Haeckel)
Se há ou não milagres, posso afirmar-vos, meus caros leitores,
que não existem como vós pensais. Explico-vos: os “milagres” – assim chamados
todos os fenômenos que escapam da explicação científica – existem, mas não são
milagres, na acepção de algo sobrenatural. Necessitam, para acontecerem, apenas
do concurso do pensamento, a que chamais, consciente ou inconscientemente, de
fé. Todavia, não vim hoje até vós para oferecer-vos um tratado, nem mesmo um
compêndio, sobre a naturalidade dos fenômenos. Pelo menos, não hoje.
Enquanto isso, continuai a crer no que pensais ser milagre.
Far-vos-á bem!
Conversava sobre amenidades com Celina Ribeirão, enquanto
sorvíamos uma chávena de infusão de alecrim, quando bateram à porta descomedidamente.
Após o susto pelo inesperado, Celina, olvidando-se que estava somente trajada com
uma quase transparente camisola, foi ver quem a chamava. Perguntavam por mim.
Era o protistologista Onofre Laranjeira. Pediu-me um instante em particular
comigo.
Após a rapidíssima palestra, pedi escusas à amiga Ribeirão,
e saí correndo em direção à casa de Padre Eugênio. Vi-o ainda a dar o último suspiro. Diante
da situação em que se encontrava o corpo do sacerdote, instei pela presença do
delegado Fagundes, ainda que pairasse sobre o ar a possibilidade de uma
terrível dor de cabeça até explicar o que uma faca minha estava a fazer cravada
no peito do Padre Eugênio.
Meu álibi: Celina Ribeirão. Presto, fiz-lhe um bilhete, cuja
resposta não tardou também a chegar, com poucas palavras, mas que me pesaram
toneladas: “Só não podem saber que horas tu chegaste cá. Meu marido, se souber,
mata-te!”...
Pensei o que poderia ser pior: ser acusado de homicídio, e permanecer
vivo, ou de adultério, e ser morto...
Este é um daqueles momentos ímpares... É quando o mais
fervoroso crente se iguala ao mais cético ateu: nestas horas, em que se está
entre a cruz e a espada, e que tudo parece irremediavelmente perdido, todos se
lembram que existe Deus!
Ah, meus amigos! Antes que continuemos com a narrativa, devo
esclarecer-vos que nada tive com Celina. Nunca encostei um milímetro sequer de
qualquer dedo meu naquela pele macia e cheirosa, que cobre como um véu aveludado
aquele corpo escultural... Tampouco toquei com meus lábios aqueloutros lábios
carnudos e rubros, qual uma pitanga, dos quais exala dulcíssimo e inebriante
mel ... Nem em sonhos! Celina é uma dileta amiga, que, ao meu sentir, cometeu
um grande erro ao casar-se com o pedrista Nabuco Ribeirão tão-somente para lenir
o sofrimento causado por um antigo amor não correspondido. Não, não sei de quem
se trata, conquanto Celina sempre dissesse, a sorrir enigmaticamente, que quem
mais o conhece sou eu...
Ante à impossibilidade de usar meu legítimo álibi, para a
proteção de tão estimada amiga, socorri-me ao meu repertório de preces. Por
muito pouco, quase me catolicizei ao clamar por tudo quanto era santo!
Constatado o óbito pelo esculápio Miguel Coriolano, o
instrumento fatífero foi retirado do peito inerte de Padre Eugênio, revelando a
lâmina carnífice que continha as iniciais N.R.
Mesmo eu a saber que não cometera qualquer delito, precipitadamente,
pus-me mentalmente genuflexo aos desígnios do imponderável. A emoção incontida
embota a razão, como já vos disse alhures...
Se eu fosse um incauto que acreditasse no supranaturalismo, se
eu não tivesse esse devotamento que tenho à ciência, certamente diria ter-se
operado um verdadeiro milagre!
Mas, milagres, como vós imaginais, não existem... Ainda bem!
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