CRÔNICAS - Herbert Haeckel
No bico do urubu
(Herbert Haeckel)
Em verdade, em verdade, eu vos digo: uma mentira contada mil vezes, ao contrário do que andam a dizer por aí, não se transforma em verdade (uma mentira será sempre uma mentira), ela apenas pode adquirir o contorno da naturalidade. Tudo o que é natural é, de certa forma, aceitável, ou passa a ser aceitável, a depender de inúmeras circunstâncias.
Estava eu cá a pensar nas repercussões desta pandemia, em
que se multiplicam como ratos os negacionistas, e lembrei-me de Atanasz
Ingazeiro, o pastor, cuja mãe o dera à luz no prostíbulo de Jurema Sapiranga,
conhecidíssima marafona de Pau de Angico, no terceiro quartel do século XX - a
alcunha remetia à blefarite ciliar que a fez perder as celhas -, e que abriu
seu próprio negócio, graças aos favores prestados a um ex-deputado udenista, já
falecido, que, como bom burguês que era, de dia, defendia a família tradicional
baiana, e, à noite, gastava seus dinheiros a explorar as putas da Ladeira da
Montanha - segundo contam alguns, esse ex-deputado udenista emprenhou mais de
vinte meretrizes. Na numerosa prole da putada, o pastor Atanasz.
Não muito apegado aos estudos, Atanasz conheceu a reprovação
escolar logo cedo. Passava pelo menos dois anos, quando não, três, em cada
série. Foi quando o ex-deputado udenista, pouco antes de morrer de doença
adquirida nas noites perdidas nas esbórnias no putal, procurado por Tiana
Ingazeiro, conseguiu, como retribuição a antigo obséquio, uma matrícula no
Nossa Senhora de Lourdes, no bairro de Nazaré. Assim, Atanasz pôde, enfim,
concluir os estudos do primeiro grau, sem necessitar, entretanto, frequentar a
sala de aula, é bem verdade...
Começa de trabalhar na carniceria do Mercado Vásquez, onde
conheceu Ivana Pompeu, que morava na Rua da Poeira e sonhava com a casa grande
com empregados bastantes.
Para atender aos gostos da moçoila, Atanasz subtraía
mercadorias, para assim vendê-las e apurar dinheiro quase suficiente para as
exigências de Ivana. Foi descoberta a ladroíce e Atanasz perdeu o emprego. Não
ficou preso, porquanto as peças do inquérito sumiram - há quem diga ter visto
as mãos de Jurema Sapiranga, que muito acalantou o delegado Antunes Pena, nos
tempos em que foi casado com a recatada Nancy, filha de proeminente político da
região cacaueira, no sumiço dos tais papéis.
Ivana, muito mais sagaz, convenceu Atanasz a iniciar uma
nova empresa. Fê-lo frequentar uma igreja, onde começou a especializar-se em
explorar a fé alheia. Fez também Atanasz um curso por correspondência com o
pastor Romildo, o capixaba, experto na arte de ludibriar incautos, que lhe
acresceu a experiência de que necessitava para ganhar dinheiro à custa da ingenuidade
dos que procuravam lenir seus sofrimentos, ou, como soía acontecer, à custa do
enfermiço medo de arder nas labaredas do inferno por causa do amontoado de
pecados - e é incrível como pessoas assim, multiplicados os bordéis disfarçados
de igrejas neopentecostais, reúnem-se aos milhares e passam a adotar um padrão
de comportamento: com uma bíblia debaixo do braço e a vestir uma roupa
desprimorosa, esperam que todos acreditemos na remissão de seus pecados! Vede,
por exemplo, Rasdna Al-Amari, que depois de enfeitar com um par de
espalhafatosas guampas a fronte do fardado marido, com o contributo do cunhado,
João Francês, hoje vive a segurar uma bíblia, a tentar fazer crer na sua
regeneração, enquanto torce para que o marido morra e deixe para ela uma pensão.
Os reiterados saques na tesouraria do templo administrado
por Atanasz fizeram com que Romildo, o capixaba, rompesse com o fino ladrão -
neste meio, a concorrência é vista com maus olhos...
Com a fama de larápio adquirida, as portas das igrejas todas
fecharam-se para Atanasz, que não teve outra opção senão, a imitar Silvano de
Fafião, criar a sua própria igreja... É bem mais fácil do que podeis imaginar,
nobilíssimos leitores! Basta um pouco de tolos e outro tanto de picaretas que
fingem arrependimento e a igreja terá o seu rebanho de ovelhas... Tosquiá-las
frequentemente é o imperativo para saciar o apetite pecuniário do pastor...
Passados alguns anos, desde os primevos tempos de
farisaísmo, fui procurado por Atanasz, que desejava divorciar-se de Ivana, após
ter ciência da tentativa infrutífera de envenená-lo. No curso do longevo
processo de divórcio, já prestes a aniversariar pela oitava vez, Atanasz
enviuvou.
Nossos contatos foram escasseando, até que desisti, por fim,
de cobrar os devidos honorários.
Todavia, não deixei de, uma vez e outra, vê-lo na tevê durante
as madrugadas, a aplicar o golpe do milagre em falsos doentes, em falsos
viciados, e a dizer que a cura dependia, sempre, do quanto se tem de fé. Aí,
portanto, o cerne da questão: ao afirmar que a cura dependia da fé, Atanasz, malandramente,
afastava de si, com naturalidade, a responsabilidade pelo insucesso da
terapêutica supostamente aplicada. Há, frequentemente, quem creia nestas farsas... E, de
tanto repeti-las, tornam-se naturais.
Com a pandemia, apesar da insistência dos pastores e bispos
em continuar com os cultos, para que não cessasse a ladroagem, sucumbiram ao
vírus letal muitos daqueles que se diziam protegidos...
O charlatanismo de Atanasz, o pastor, com seus falsos milagres,
de Romildo, o capixaba, com sua falsa água consagrada, e de tantos outros, foi
escancarado, e ficou mais do que provado que igreja nada cura.
Antes de finalizar esta crônica, soube que Atanasz está,
como se diz por aí, no bico do urubu: agoniza, sem esperança alguma de convalescer,
num leito de cuidados intensivos...
Bravo!!!!!👏👏👏
ResponderExcluirMuito show!
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