CRÔNICAS - Herbert Haeckel
Quando a vi...
(Herbert Haeckel)
Confesso-vos, meus caríssimos leitores, dividir-me entre o
que disseram Emanoel Viana Teles e Antônio
Carlos Gomes Fontenelle Fernandes. Na poética visão, tudo e nada podem
ser, mesmo, lindos e maravilhosos... Depende de onde se olha, para onde se olha
e como se olha.
Mas, algo realmente me aconteceu, assim como com Teles, não somente
ao cruzar a Ipiranga e a Avenida São João, ao chegar por aqui. Além da dura
poesia concreta de suas esquinas haver-me impactado, principalmente, sensibilizaram-me
as gentes que não conseguiram acompanhar o tempo e as ilusões do amoedado ouro,
e que se perderam, e que ficaram para trás, embaralhadas em seus sonhos de uma
noite quase sem fim.
A noite fria, assim como a Fernandes, ensinou-me a amar mais
o meu dia, e, na mesma intensidade, fez-me amá-la também. E cada dia presente é
um dia tão importante quanto aquele que está por vir, quanto aquele que é
transato. Por isso, aproveitai-o!
Vi-a, pela primeira vez, sentada, solitária, a uma mesa do
Sujinho, da lusitana filantropia, que salvou muita gente que quase nada possuía.
Visitaria, naquela noite, um amigo que morava no Trussardi,
na Avenida São João, esquina com a Praça Júlio Mesquita, mas, antes, teria de
comer algo, e o dinheiro era bastante somente para uma refeição lá, no Sujinho,
em que todos eram igualmente acolhidos, onde não havia fronteiras, nem no
infinito, onde, democraticamente, desvalidos, jornalistas, artistas,
estudantes, intelectuais, putas, médicos, políticos ocupavam suas poucas mesas
e deliciavam-se intensa e prazerosamente com o sabor da acolhedora comida como
se fosse de mãe.
Da Consolação, seguiria, a pé, num trajeto que passaria pelo
Cemitério da Consolação, pela Igreja de Nossa Senhora da Consolação, já na
Praça Roosevelt, quando pegaria a Ipiranga, a vencer, em seguida, a Praça da
República, e, na esquina do edifício Independência, das animadas mesas do
Brahma, alcançaria a São João, ainda abalada pelo fogo e fumaça do prédio da
Pirani, entre a Pedro Américo e a Aurora, passado pouco mais de um mês, daquele
24 de fevereiro, de uma quinta-feira de fortes ventos, em que a tragédia só não
foi maior porque a ajuda veio do céu...
Detive-me naquele instante naquela belíssima imagem, quando
a vi, e não me contive. Não me pude conter, é bem verdade. Fui em sua direção.
Pedi-lhe licença e, antes mesmo do seu consentimento, sentei-me, apressadamente,
apresentando-me a ela.
Seus olhos contristados faziam-na parecer-me, apesar disso, muito
mais bonita e cativante. Os cabelos nigérrimos, realçados pela floritura branca,
como diadema, escorriam, leve e naturalmente, pelo ombro, a remeter-me à deífica
figura olimpiana. Os lábios de intenso rubro eram o osculatório que a boca
sequiosa desejavelmente procura.
Perguntou-me sobre coisas que não soube eu responder naquela
hora, como, por exemplo, se eu era alvenel ou se conhecia algum, e que só
tiveram sentido para mim algum tempo depois.
Ofereci-lhe compartilhar a minha quase opípara refeição, sob
o olhar pasmado do garçom, que parecia nada entender. Mas, ela recusou, a dizer-me
que há muito não sentia fome...
As horas prestas, agradabilíssimas, passaram como num átimo,
a ponto de deslembrar-me de meu compromisso com o amigo Nestor – mas, ele
haveria de aceitar as minhas escusas!
Chegado o momento de despedir-nos, ofereci-me para acompanhá-la
a casa. Recusou, inicialmente, ao que supus tentar parecer-lhe uma gentileza (com
segundas intenções, hei de assumir esta minha declaração confessória!), a
dizer-me ser desnecessário o esforço, sobremaneira pelo adiantar das horas, já na
iminência de iniciar-se um novo dia. Todavia, com a minha insistência,
limitou-se a dizer-me:
-Tu é quem sabes! Depois, não vás dizer que não avisei...
O olhar de perplexidade do casal ao lado adiu-me uma certa difidência,
que me não fez desistir, entretanto, do meu desiderato.
Pusemo-nos a caminhar em direção à Praça Roosevelt. Passos
lentos, como a quererem perpetuar o momento, e as mãos, não sei se adrede ou acidentalmente,
que se tocavam, como se arquitetassem o inevitável, ao meu sentir, entrelace...
O ar blandífluo da noite soprava-nos a face e entregava-nos
dulcíssimo aroma de flores.
Caminhei ainda alguns passos quando notei que ela parara
logo atrás. Volvi-me.
- Aqui está de bom tamanho. Se quiseres, vemo-nos outra vez –
disse-me ela.
Acenou-me, a despedir-se, e, fantasticamente, traspassou o
muro do Consolação.
Consegui, enfim, após alguns dias, localizar sua campa, que
necessitava de um conserto, para que o ataúde não mais ficasse exposto.
Talvez, para mim, não haveria importância alguma a pedra fraturada
no requietório. Mas, havemos de pôr-nos no lugar do outro, mesmo em certas
circunstâncias que não se nos parece habitual. Contratei um alvenel, que bom
serviço prestou.
Linda Inês, então, sorriu-me, pela primeira e última vez.
Nunca mais a vi.
E alguma coisa aconteceu em meu coração depois que eu cruzei
a Ipiranga e a Avenida São João... E as noites? Ah, eu as amo, como amo os meus
dias!